De Manuel Pisco, poeta popular das Hortinhas, ouviu Luís de Matos contar a história do “tribunal de analfabetos” que, mais à frente, haveremos de relatar. Antes, porém, iremos ao encontro das alcunhas de Terena. Mas, para já, o palco é para a memória do eguariço, “homem ágil, valente e destemido como não havia outro em toda a redondeza”.
Só para o encontrar era toda uma aventura. Primeiro haveria de se tomar a estrada de Terena em direção ao Santuário da Boa Nova – já referenciado no século XIII nas “Cantigas de Santa Maria”, de Afonso X de Castela – e atravessar a Ribeira do Lucefécit, depois caminhar pela estrada da Barranca de Baixo, atravessar o Ribeiro do Negro, junto ao Pigeiro Velho, ali mesmo “onde o Ti Miúdo foi hortelão durante vários anos”.
O caminho está quase percorrido, mas ainda falta o quase. Do outro lado do ribeiro haveria de se virar à esquerda, subir a elevação e, finalmente, entrar no Monte do Pigeiro, terra de cereais, de pastagens e de montados de azinho. Faltaria apenas saber a paragem da manada de éguas e, certo e sabido, por ali se encontraria José Inácio Gonzaga de Paiva, o Zé Fragas para os amigos, eguariço [sim, trata-se de bom português] de profissão e vocação, recordado por Luís de Matos no livro de memórias “Estórias Reais de Vida da Minha Gente”, agora lançado em Alandroal.
O eguariço, lembra o autor, “vestia calça de cotim ou de saragoça, camisa aos quadrados pequeninos, atada com um nó mesmo por cima do largo cinto de cabedal, e bota cardada. No inverno usava safões e samarra de pele de ovelha preta”. Trabalhador “altamente qualificado”, era o encarregado de guardar e apascentar a manada, também ver “as que mostravam excitação genética para as levar ao lançamento ou cobrição”, tosquiar as crinas, velar para ferragem.
“Dizem os trabalhadores que com ele privaram, que montava as éguas, todas sem exceção, sem lhes colocar qualquer manta ou cela e muito menos qualquer cabresto, galopando a toda a velocidade, segurando-se apenas pelas crinas e guiando o animal com os pés, ou quando muito com a ajuda de uma varinha”.
Luís de Matos lembra-se de o ver chegar a casa, paredes meias com a sua, na Rua do Forno, em Terena: “chegava ali perto doadro da Igreja Matriz, a escassos metros de casa, dava um toque na égua e esta voltava sozinha para a manada”. Memórias de um cowboy alentejano que o autor reuniu em livro, que apresenta não apenas como “uma coletânea de narrativas”, antes “um testemunho vivido das experiências, desafios e triunfos das pessoas que compõem a tapeçaria rica e diversificada” da comunidade onde nasceu e passou boa parte da infância.
“Na correria do mundo moderno”, escreve, “é fácil esquecer o valor das pequenas coisas”. Daí que a “riqueza da nossa cultura” resida em boa medida nas “tradições” e nas histórias passadas de geração em geração. “Este livro é uma tentativa de capturar esses momentos preciosos e eternizá-los, como um lembrete de que a simplicidade tem um charme inigualável”.
Nas alcunhas, por exemplo, e bem Francisco Martins Ramos as reuniu em Tratado. “Na maior parte dos casos os homens eram conhecidos pela alcunha, não pelo seu nome de registo”, lembra Luís de Matos.
Sem desprezar o Caga Dinheiro, como era apodo do seu avô José de Matos, é numa outra que resume todo o processo de nascimento e transmissão de uma alcunha fabricada no Alentejo profundo: “Um dia, na eira do Rossio, ardeu a seara do meu tio Joaquim Mira, que estava pronta para debulhar. O meu primo Inácio, na brincadeira com outro gaiato, puxara fogo à seara. A partir daí, o Inácio passou a ser conhecido por Puxa Fogo. E quando o filho do Inácio nasceu, que se chama Luís, herdou a alcunha do pai e o mesmo aconteceu com o filho do Luís”. Uma família Puxa Fogo, está bem de ver.
Nascido em dezembro de 1944, Luís de Matos é aposentado da Função Pública, depois de ter exercido funções no então Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis (FAOJ) ou na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Alentejo, entre outras. Ligado à imprensa desde a década de 90 do século passado, colaborou com o programa “País País” (RTP1), fundou jornais (“Registo” e Alentejo Ilustrado), publicou livros infantis, outro de memórias (“Diário da Guerra Colonial – Guiné 1966/68) e presidiu durante 15 anos à Associação de Proteção aos Idosos de Terena (APIT), entre muitas outras atividades.
Para este livro, que dedica “à memória” dos pais, convocou protagonistas que “são pessoas comuns, mas extraordinárias na sua humanidade”. Figuras conhecidas da sua vizinhança, da sua infância, parentes, alguns familiares distantes, até desconhecidos com quem se cruzou. “Cada estória aqui pre- sente”, sublinha, “foi vivida intensamente, repleta de emoções genuínas e ensinamentos profundos. Elas revelam a força e resiliência daqueles que, muitas vezes, são invisíveis aos olhos da sociedade, mas que carregam em si a essência do que significa ser humano”.
Quanto ao “tribunal de analfabetos”, já aqui referido, a contenda iniciou-se por causa do acesso ao Monte da Ladeira e acabou na justiça, segundo a versão de Manuel Pisco. “O Ti Manel Bia passava lá pela estra- da. A minha Ti Leonor meteu-se à frente dele com um tanganho para não o deixar passar, mas ele que levava uma forquilha encostou-a à barriga da minha tia e ainda a picou”. Queixa na GNR, tudo para o Tribunal de Redondo. “Ninguém desta gente sabia uma letra. Era tudo um tribunal de analfabetos”, remata.