Aolaria pedrada, única no país, tinha no seu início uma função utilitária, como recipientes para guardar, refrescar e transportar a água. Eram famosos o moringue, a bilha de duas bicas, a cantarinha e o asado, entre outros, como famosos eram os oleiros de Nisa que nos anos 50 e 60 do século passado demandavam as estações dos caminhos-de-ferro de toda a região, principalmente no verão, para vender as suas peças de louça.
Na década de 60 havia em Nisa uma dezena de oficinas de oleiro. Funcionavam sazonalmente, tendo cada oficina, em média, cinco ou seis raparigas, dos 11 aos 20 anos. Saíam da escola e iam para as oficinas, pedrar, para fugirem ao trabalho no campo. Ganhavam à peça, as mais pequenas eram pagas a três tostões, as maiores chegavam aos 10 tostões e o pote podia render-lhes 25 ou três escudos, conforme. Eram os preços da época.
A vida modernizou-se, a emigração levou ao abandono das terras e dos campos e a olaria quase se finou. Restaram dois ou três oleiros, já idosos, e chegou a te- mer-se pelo fim desta atividade artesanal. A função utilitária foi dando lugar a uma conceção mais decorativa e artística, mantendo, no geral, a essência dos estilos e desenhos, o que levou a um aumento da procura e das vendas, o que não correspondeu, no entanto, ao apare- cimento de novos oleiros, pese embora o esforço da Câmara e de algumas ações de formação financiadas pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP).
Não há mal que sempre dure e uma das ações de formação acabou por dar alguns frutos, com uma pessoa interessada em dedicar-se à arte do barro. Ilda Marques nasceu em Portalegre, tem 51 anos e um percurso profissional no ramo do imobiliário. A pandemia trocou-lhe as voltas e abriu-lhe as portas para dar um novo rumo à sua vida. Retornou à terra, frequentou um curso de olaria do IEFP, em Nisa, durante oito meses e sentiu-se seduzida pela beleza do artesanato nisense.
Foram meses de muita entrega e aprendizagem, decidida como estava a tornar-se oleira e pedradeira. Após o curso, restaram oito dos 15 formandos e apenas um se “aventurou” no estágio, uma formação em ambiente de trabalho com o senhor Pequito (oleiro) e a sua esposa, Joaquina (pedradeira).
É na velha oficina de mestre Pequito, com mais de 70 anos a “atirar o barro à parede”, que Ilda Marques aprende os ensinamentos do veterano oleiro, garante as tarefas ditas “masculinas” como a roda de oleiro, dando formas ao barro, e também as de cariz mais “feminino” como é o trabalho reservado às pedradeiras.
E é nesta duplicação de tarefas que Ilda Marques se sente como “peixe na água”, como artista e criadora. Conserva os conselhos do “velho” mestre, respeita as conceções tradicionais da olaria de Nisa, mas entende que o artesanato do barro não é uma arte parada no tempo e que há um caminho imenso a descobrir e a percorrer. Sente que a inovação tem o seu lugar próprio e a prova disso é o carinho com que são recebidas as peças que cria e dá a conhecer através da internet.
É um caminho novo para a olaria nisense, já experimentado, sem aparente sucesso, por outros oleiros na década de 60. O “novo”, o diferente, traz sempre consigo alguma desconfiança e oposição, mas Ilda diz ser uma “sonhadora” e está determinada a prosseguir este percurso profissional por que enveredou.
Após dois anos como oleira e pedradeira, fazendo e aprendendo, Ilda Marques esteve na última Feira de Artesanato de Vila do Conde e sentiu a admiração que os seus trabalhos despertaram entre os visitantes do evento. Ali mostrou e vendeu as peças que a sua imaginação desenhou e criou, desde candeeiros, relógios, letras, aves, imagens de santos, enfim toda uma panóplia de objetos com valor decorativo, ao lado de outras com função mais utilitária.
“A inovação abriu-me muitos caminhos, outros horizontes para a aplicação do barro, sem deixar de respeitar e ser fiel aos princípios da olaria pedrada de Nisa para a qual dou o meu contributo, para que chegue mais além e possa despertar o interesse dos mais jovens, para que percebam que não são só potes, barris, cantis e afins. Há um campo vasto a explorar numa atividade que pode ser rentável se houver aplicação e vontade de, a fazer progredir. Tenho pena de não ter começado mais cedo”, garante.
A oficina de mestre Pequito, a “casa” onde dá livre-trânsito à sua imaginação, é visitada por uma diversidade de clientes ou simples curiosos, não faltando nestas visitas as dos alunos do Agrupamento de Escolas, ali mesmo ao lado.
“Estou agregada a um espaço de trabalho, anti- go e tradicional que muito respeito. Estas paredes estão cheias de história, ‘viram’ muito barro lançado à parede pela mão dos oleiros, mestres e aprendizes, e ouviram, vezes sem conta, o som ronceiro da roda do mestre no seu labor para dar forma e vida a uma peça”, conta Ilda Marques, assegurando ter encontrado uma forma de arte que a inspira e desafia a cada dia que passa
ARTE MILENAR
Dar formas ao barro é uma arte milenar com grande expressão no Alentejo. A olaria pedrada de Nisa caracteriza-se pelas suas morfologias e funcionalidades, nela sobressaindo a vertente decorativa. Pouco se sabe sobre as suas origens, havendo quem aponte o seu aparecimento ao tempo dos visigodos, não sendo conhecidas, no entanto, referências anteriores aos finais do século XIX.
Para a sua conceção, são utilizadas argilas de exploração local. O quartzo é originário dos filões da Serra de S. Miguel. O processo de fabrico divide-se em várias fases e na sua composição a olaria de Nisa utiliza três tipos de barros: o preto, o branco e o vermelho (este, proveniente de fora do concelho, dá cor à peça). Na preparação, os barros são colocados a derregar num “barreiro” [tanque] e misturados com água, criando uma pasta semilíquida. Com um crivo, e já em outro barreiro, são retiradas todas as impurezas.
De seguida, e depois de amassado em “pélas” [pequenas quantidades], é “aventado” [atirado] contra a parede para que, ao cair, perca a quantidade de água que tinha em excesso. Após este processo e depois de já ter passado pela “atoquina” [mesa onde a pasta é amassada], o barro é colocado na roda, acionada com o pé, onde o oleiro, após molhar as mãos no “barranhão” inicia a sua moldagem.
Por fim e ainda na roda, depois de moldada a peça é aperfeiçoada por uma cana ou uma “aplanata” [pedaço de feltro]. Pelas delicadas e experientes mãos femininas começa a sua originalidade enquanto decoração, utilizando dedais, casquilhos de lâmpadas e agulhas de coser para fazer o risco que irá conferir à peça o seu desenho final. Concluído este meticuloso processo, e ao longo dos riscos, são incrustadas as pedrinhas brancas de quartzo leitoso. Folhas, frutos, ou outro tipo de motivos da fauna e flora regional são os padrões decorativos que figuram na olaria de Nisa.
No que toca à cozedura e na linguagem regional de Nisa, de acordo com Maria Branco, da Universidade de Évora, “os dois atos da cozedura são designados por desquente e lavar a loiça. Para o desquente, o oleiro utiliza lenha grossa, que por fazer uma chama baixa, liberta muito fumo que se aglomera dentro da câmara do forno, tornando as peças negras. Quando o fumo desaparecer e a cor do lume for vermelho ou alaranjada, significa que o forno está a uma temperatura próxima dos 800 graus centígrados, começando então a fase seguinte – o lavar da loiça”.