A história de Alfredo Luís da Costa, baixo-alentejano e regicida, herói e vilão

Nascido em Casével, Castro Verde, radical republicano, membro da maçonaria e da carbonária, Alfredo Luís da Costa foi um dos regicidas de 1908. Aquilino Ribeiro, de quem foi amigo, diz que “não lhe faltava nada para carrasco ou herói”. Luís Godinho (texto)

Lisboa, 1 de fevereiro de 1908

Alfredo Luís da Costa levanta-se cedo e dirige-se a casa de um amigo. “Temos umas contas a fazer”, diz-lhe. Segundo o relato deixado pelo escritor Raul Brandão no seu segundo livro de memórias, o amigo responde que a dívida poderia ser liquidada noutra ocasião. Alfredo ri-se. E revela: “Hoje vamos matar o João Franco. Esperamo-lo na Rua Alexandre Herculano. O [Manuel] Buíça leva a carabina e dá um tiro na orelha do cavalo e eu atiro-me para a carruagem e mato-o como um bicho”. João Franco governava em ditadura desde maio do ano anterior, imposta a pretexto da crescente agitação social e política em que o país havia mergulhado. É ele o alvo do denominado “Grupo dos 18”, formado com o objetivo de eliminar o chefe de Governo, e liderado por Alfredo Luís da Costa. “Ainda que talvez no Terreiro do Paço liquidássemos toda a cambada duma vez”, desabafa o homem, nessa manhã de fevereiro.

Casével, Castro Verde, 24 de novembro de 1883

Filho de Manuel Luís Costa, um ferrador natural da freguesia de São Miguel do Pinheiro (Mértola) e de Maria da Soledade, Alfredo Luís da Costa nasce no outono de 1883, “filho primeiro e legítimo” do casal, como haverá de escrever o padre António Ximenes Vasques, três meses depois, quando batizou o rapaz na Igreja de São João Baptista, em Casével, onde a família vivia. Completados os 10 anos, vai para Lisboa viver com um tio, que a imprensa haverá de descrever como sendo “um importante e bem acreditado comerciante com estabelecimento na Rua Augusta”. Aprende a ler e a escrever. Torna-se caixeiro viajante, vende fazendas de terra em terra. Um homem “atirado para a cidade da aldeia alentejana e que, dobrando-se sobre si, batido dos baldões, se encontrou a marchar”, na expressão de Aquilino Ribeiro, outro escritor, de quem se tornaria amigo.

Évora, 1 de fevereiro de 1908

Proveniente de Vila Viçosa, o comboio onde viajam o rei D. Carlos, a sua mulher, D. Amélia e o herdeiro da coroa, Luís Filipe, pára na estação de Évora. Era hábito dos Bragança passar uma temporada de inverno em Vila Viçosa. “Na Tapada”, escreve a “Ilustração Portuguesa”, “tem por costume el-rei organizar partidas de caça, para as quais convida pessoal da sua casa civil e militar, os prediletos da sua entourage palaciana e às vezes mesmo algum homem político entre os mais afeiçoados à Corte”. A revista publica fotografias desse ano, onde se vê o rei a caçar, ou a rainha D. Amélia debaixo de um sobreiro.

“Nenhum cronista o menciona, mas presume-se que uma refeição ligeira tenha sido servida a bordo, já sobre a uma da tarde: quando viajava na sua carruagem pessoal, D. Carlos apreciava refeições ligeiras e frias – uma peça apimentada, uma galinha em geleia, umas fatias de carne assada – algo que não requeresse fogão”, escreve Jorge Morais [“Regicídio – A Contagem Decrescente”, Zéfiro]. O comboio parte de Évora, com destino a Lisboa, pouco antes das 14h00.

Lisboa, 1 de fevereiro de 1908

Depois da visita ao tal amigo, cujo nome não é mencionado por Raul Brandão, Alfredo Luís da Costa dirige-se a casa de um outro. “Naquela manhã morna, com os pardais nos beirais da Boa Hora a espreitar o sol e em baixo, na calçada, a alcofa dos carroceiros, ouvi que batia à porta mão que me não era estranha pelo tónus das pancadas”, regista Aquilino Ribeiro [“Um Escritor Confessa-se”, Bertrand]. “Pela porta entreaberta passou o vulto, meio desengonçado, o anélito de opressão que lhe era comum, indicativo de máquina afadigada, de Alfredo Luís da Costa”. Os dois conversam sobre os planos para o derrube da monarquia. “Até que enfim. Tenho o grupo que há de ir esperar João Franco”, diz o castrense.

“Levo o Buíça, mas com certa relutância. Você sabe, o Buíça tem dois filhos menores. Morreu-lhes a mãe… Que seria dos pobrezinhos se o pai perdia a vida na aventura”. Na eventualidade de o chefe do Governo não aparecer na Alexandre Herculano, ao Terreiro do Paço não haveria de faltar. “Vamos dar-lhe caça até o descobrir. Nem no meio do inferno nos escapa. Ele há de ir hoje ao Terreiro do Paço esperar a família real. Fuzila-se mesmo lá”.

Estremoz, 1903

Pouco depois de chegar a Lisboa para trabalhar com o tio que vendia tecidos na Rua Augusta, Alfredo Luís da Costa ganha o gosto pela política. Homem dinâmico, “mas com a atividade pressurosa e febril dos impacientes”, torna-se republicano, rebelde, revolucionário. “Não lhe faltava nada para carrasco ou herói: coragem, decisão, porque não duvidava, e o fanatismo que existe sempre que acima do espírito, povoado por vaga floração, paire um só pensamento”, assinala Aquilino Ribeiro.

As relações com o tio rapidamente se desvanecem, levando o jovem de Casével a trabalhar como caixeiro para outros comerciantes. Foi sol de pouca dura. Em 1903, ano em que ameaça os “representantes da Nação” com “os marmeleiros [que] ainda crescem nos pauis”, inicia “intensa propaganda republicana” em Estremoz, daí começando a escrever para os jornais da classe. Torna-se sindicalista, preside à Associação dos Empregados do Comércio de Lisboa, funda uma pequena editora para imprimir folhetos contra o regime.

Lisboa, 1 de fevereiro de 1908

Ao início da tarde, dois homens sentam-se “à mesa do costume”, nas traseiras do Café Gelo em Lisboa. “Alfredo Luís da Costa e Manuel dos Reis Buiça preparam-se para a sua hora. Pedem uma omeleta e bebem cerveja”, conta Jorge Morais. Não tendo conseguido encontrar João Franco, decidem seguir para o Terreiro do Paço. É ali que ultimam os pormenores para o atentado que haveria de culminar com a morte do rei e do príncipe herdeiro, numa operação que tinha sido ultimada dois dias antes, numa reunião do “Grupo dos 18” em Xabregas.

A 31 de janeiro, Alfredo visita o jornalista Meira e Sousa, na Rua Nova do Almada: “Deixo-lhe um papel para o senhor mostrar mais tarde: Vim cá para lhe dizer adeus, porque tem que ser… Vamos ao que ninguém é capaz de fazer”.

Rocha Martins [“D. Carlos: História do Seu Reinado”, 1926] assegura que o baixo-alentejano fez ainda outro pedido ao jornalista: “Peço-lhe uma coisa, uma obra de caridade. É que não escapo. Tenho uma irmã: proteja-a, faça-lhe o que puder”.

Através da imprensa da época sabe-se que, por esta altura, já Alfredo Luís da Costa, então com 25 anos, era órfão de pai. Vivia num quarto arrendado no número 20 da Rua dos Douradores, na baixa lisboeta, onde a polícia nada mais haveria de encontrar além “de uma mesa e duas cadeiras” e de “uma grande porção de folhetos e fascículos”. Não eram raros os dias em que “passava necessidades para não servir mais do que os ideais”, tendo em pelo menos uma ocasião tentado o suicídio, ao atirar-se para debaixo de um carro elétrico, que só não o atropelou porque o guarda-freio travou a tempo.

Epílogo

Acabado o almoço no Café Gelo, Alfredo Luís da Costa, Manuel Buiça e outros conjurados do 1 de fevereiro descem a Rua do Ouro e “tomam posição” no Terreiro do Paço. “Costa cose-se às arcadas do bloco ocidental e espera febrilmente”, escreve Jorge Morais. Pelas 16h30, a família real chega ao Barreiro e embarca no vapor D. Luís, chegando ao Terreiro do Paço meia hora depois.

É de Aquilino Ribeiro o relato do que se seguiu: “Já Buíça, de um salto, se plantava, em diagonal para a carruagem, a um terço da largura da rua, hirto como um atirador; sacudia para trás as abas do capote e, metendo a carabina à cara, visava. Alfredo Costa, por sua vez, caía sobre a carruagem que passava na sua frente. Foi mais rápido do que se conta”.

A carruagem à sua frente era aquela em que seguia D. Carlos. Com dois tiros de pistola, Alfredo Luís da Costa atinge o rei, que já tinha sido alvo de outros dois disparos, e vira-se para o príncipe herdeiro. Quando D. Luís Filipe se levanta para sacar do revólver fica na mira de Manuel Buíça, que não hesita e volta a disparar. A polícia carrega então sobre os revoltosos. Alfredo Luís da Costa é atingido com golpes de sabre e tiros no peito e na cara, tendo morrido no local.

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