De acordo com Nuno Cacilhas, coordenador do Roteiro Levantado do Chão, o novo Centro Interpretativo “surge com a principal missão de contribuir para o estudo, a valorização e a divulgação” da obra “Levantado do Chão”, de José Saramago, “assim como de todo o contexto biográfico, histórico e etnográfico do romance que nos remete, essencialmente, para o património material e imaterial do concelho de Montemor-o-Novo”.
Localizado junto à Igreja Matriz, no convento de São João de Deus, antigo edifício setecentista recuperado pelo Município, o Centro Interpretativo constitui o ponto central do Roteiro Literário Levantado do Chão, criado no concelho, e disponibiliza ao viajante uma experiência única através da exposição permanente sobre memória e identidade.
A mostra conta com diferentes dispositivos tecnológicos de caráter lúdico e pedagógico que abordam o contexto do romance “Levantado do Chão”, publicado em 1980, no que respeita aos aspetos históricos e etnográficos do concelho de Montemor-o-Novo e dá ainda a conhecer aspetos biográficos do autor e da construção da obra e as paisagens literárias que o romance pode inspirar.
“Levantam-se os homens do chão, levantam-se as searas, é no chão que semeamos, é no chão que nascem as árvores e até do chão se pode levantar um livro”, comentou José Saramago explicando o título do livro, considerado como um dos seus romances “fundamentais”, no qual percorre uma zona do Alentejo caracterizada pelo latifúndio, desde o final do século XIX ao período pós-Revolução de 25 de Abril de 1974. Para o escrever viveu um longo período em Lavre. “Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando terminasse: Isto é o Alentejo”, comentou.
“É maravilhoso que 102 anos depois do nascimento de José Saramago, possamos estar aqui reunidos por via de um dos seus livros e celebrar a vida e obra de um escritor”, disse por sua vez Sérgio Letria, diretor da Fundação José Saramago, também presente na inauguração do Centro Interpretativo, uma obra onde, segundo Olímpio Galvão, presidente da Câmara de Montemor-o-Novo, se “celebra a luta dos alentejanos” ao longo do período retratado no livro. “Estão [também] aqui reunidos muitos fatores de atração ao nosso território, e é isso que tenho de relevar deste Roteiro Turístico”, acrescentou
Segundo o Município, este projeto, nas suas diversas vertentes, orçou em cerca de 380 mil euros, contando com o apoio financeiro do Turismo de Portugal, através do programa de Valorização do Interior.
O ROTEIRO
“Que vem fazer o meu livro?”, interrogava-se José Saramago, em 1980, em declarações ao “Diário de Lisboa” sobre a sua recém-publicada obra “Levantado do Chão”. Volvidas mais de quatro década, surge uma resposta: basear um roteiro que pretende dar a conhecer as lutas antifascistas no Alentejo.
Com um portal e uma aplicação móvel, o roteiro liga os concelhos de Montemor-o-Novo, Évora e Lisboa através de três percursos temáticos, cuja soma perfaz mais de 238 quilómetros rodoviários e oito pedestres. A partir dos 26 pontos de interesse sinalizados, podem conhecer-se “os lugares onde os episódios mais marcantes da obra se desenrolam”, mas também “aspetos biográficos relacionados com a estadia de José Saramago em Lavre, localidade para onde o autor se deslocou em 1976, com a finalidade de se documentar para escrever aquele que viria a ser o seu primeiro grande romance”.
O primeiro percurso começa na Fundação José Saramago, em Lisboa, onde se convida a “conhecer a vida e a obra” do autor e, em particular, o romance “Levantado do Chão”. Com direção a Montemor-o-Novo, este trajeto, que se intitula “Os Levantados deste Chão – A Repressão da Ditadura no Alentejo”, aborda, a partir da personagem João Mau-Tempo “os momentos mais violentos da obra, como as prisões, as torturas e os assassinatos do regime ditatorial sobre o povo alentejano”. Em especial, com passagem obrigatória pelos locais mais expressivos dos assassinatos de “Germano Vidigal e de José Adelino dos Santos”, militantes do PCP, e únicas personagens que o livro retrata a partir “do nome original”.
O segundo percurso temático, “A Resistência: João Mau-Tempo e a Luta do Proletariado Agrícola Alentejano”, retrata os momentos em que a personagem principal “frequenta a escola no Ciborro, se indigna em Évora no comício fascista e se torna um heróico resistente à ditadura e à exploração laboral, sofrendo prisões e torturas, sem nunca denunciar os seus camaradas de luta”.
Já o último percurso, “José Saramago em Monte-Lavre”, volta-se, como o nome indica, para Lavre, local onde o autor se fixou e que lhe permitiu acompanhar de perto as gentes locais. Termina, em específico, na Ponte Cava, “onde o autor observava os ranchos a deslocarem-se para os trabalhos rurais e aproveitava sempre a oportunidade para meter conversa e tomar o pulso ao povo”.
Este roteiro concretiza, concluindo, um dos objetivos que José Saramago avançou ao “Diário de Lisboa” naquela mesma entrevista em 1980: “Faço votos por que seja um simples artefacto arqueológico, fora de uso, ou, quando muito, e não será pouco, um registo para a memória coletiva. Há-de ser possível dizer um dia: Pensarmos nós que a vida no Alentejo foi assim”.