Artigo de Paulo Lima: “O cante alentejano- um depoimento pessoal”

Artigo do coordenador da candidatura do cante alentejano a Património Imaterial da Humanidade. Paulo Lima (texto) e Cabrita Nascimento (fotografia)

Há uma década, o cante foi classificado pela Unesco como Património Cultural Imaterial da Humanidade. Uma distinção e um selo que contribuíram decisivamente para mudar a forma como se olhava para o Alentejo e para os alentejanos, assim como para acrescentar valor económico à paisagem transtagana.

Este canto é – a sua face que hoje lhe reconhecemos – um produto da estratégia fascista gizada, colocada no terreno pelo Governo Civil de Beja nos anos 40 do século XX, através de concursos regionais, nos quais se lhe definiu a forma e o conteúdo. Se nas décadas seguintes se manterá preso a umas dezenas de grupos, a seguir ao golpe militar de 1974 irá explodir em número e cantará a Revolução. Este engajamento político irá colocar-lhe dificuldades a partir de 1990, levando à cisão de muitos grupos corais aquando da alteração do mapa político.

Em 1997, realiza-se o Congresso do cante alentejano em Beja, com o objetivo de discutir o presente e o futuro desta prática. Pode-se afirmar que é aqui que se começa a definir a procura de criar uma nova vida, que passará por dois aspetos: a sua retradicionalização e a criação de uma estrutura associativa.

É deste encontro que irá estruturar-se uma ideia de retorno a uma forma de cantar, selando o tempo dos cantes políticos, e ter origem uma estrutura ativa durante uma década, a Associação MODA. Esta associação – muito conservadora, mas com o mérito de ter conseguido reunir uma parte substancial dos grupos corais – reorganizou ideologicamente quem cantava, valorizando o repertório, o traje e o comportamento em palco. Em simultâneo, lutou por aspetos importantes, tais como a criação de uma figura jurídica, formas de ensaio, a sensibilização dos municípios para o seu reconhecimento patrimonial, ou a criação das chamadas escolas de cante Alentejano.

Ao mesmo tempo que a MODA agregava grupos, no município de Évora, em finais de 1990, a autarquia liderada por Abílio Fernandes quis refazer a cidade na sua relação com a cultura. É neste contexto, de uma Évora que quer mudar a sua estratégia cultural, que, em 1999, por puro acaso, descubro o programa da Unesco denominado Proclamação das Obras-Primas do Património Oral e Imaterial da Humanidade, que tinha sido lançado há pouco tempo.

Este programa vai ser a base da atual Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adotada pela Unesco em 2003, que foi a inspiração de um projeto para a cultura popular em Évora, apresentado em 2001, que se suportava na constituição de um arquivo da cultura popular do Sul e na inscrição de várias manifestações na Unesco. Na sua apresentação pública, em 2001, foi o cante que à altura se tornou a intenção mais visível.

A mudança política da CDU para o PS na política em Évora, ditou o fim deste processo, que só volta a ser recuperado entre 2007 e 2010, no âmbito do Identidades – Programa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial do Alentejo, desenvolvido na então Direção Regional de Cultura do Alentejo. Este projeto, suportado pela criação de uma rede de casas ligadas ao património imaterial, propôs, e protocolizou, com a Câmara Municipal de Serpa, em 2009, a criação da Casa do Cante, hoje Museu do Cante.

Aquando da sua extinção, em 2010, o programa Identidades tinha acabado de ser alvo de um convite da Comissão Nacional da Unesco (CNU), para que fosse candidatado às boas práticas desta organização e instruir-se o processo que levasse à inscrição do cante alentejano na lista representativa do património cultural imaterial, intenção apresentada nesse ano, em Serpa, num encontro da MODA. A destruição deste programa (quando havia sido aprovado cerca de 800 mil euros para a sua execução da Administração Central, tendo sido o único projeto estratégico para a salvaguarda do património imaterial que existiu em Portugal), causou mais um impasse na ideia de se candidatar o cante.

Por um puro acaso, em 2011, aquando da apresentação de um projeto pela Câmara Municipal de Serpa à CNU, o seu presidente propôs ao autarca João Rocha que agarrasse essa ideia. E é desta forma que Serpa surge enquanto promotor do pedido de inscrição, trazendo, enquanto parceiro estratégico, o Turismo do Alentejo, então numa fase interessante de unificar todas as entidades sub-regionais.

A forma desastrosa como o processo foi conduzido por uma empresa privada, que não percebeu nem os dinamismos nem as tensões locais, levou à sua recusa, em março de 2012, deixando uma pesada herança em todo o processo. A decisão de retomar a candidatura no outono de 2012 não foi, pois, fácil. Para lá da descredibilização e das ten- sões entre municípios, investigadores e instituições, não havia já financiamento e as exigências da CNU foram draconianas.

No âmbito da Casa do Cante foi constituída uma pequena equipa formada pela Professora Doutora Salwa Castelo-Branco, uma exigência da CNU, pelo seu perfil de seriedade e de conhecimento, e por mim, com o apoio político do eng.º Tomé Pires, então presidente da Câmara de Serpa. Houve que aproveitar o filme e o portfólio fotográfico, pouco adequados já à narrativa do formulário, e alguma documentação, que teve que ser, posteriormente, revista. O formulário foi construído em poucos dias e tivemos algumas reuniões na Casa do Alentejo em Lisboa, com pessoas reconhecidas pela comunidade do cante.

O pedido chegou a Paris. E, em novembro de 2014, o cante alentejano foi inscrito. E foi considerado um excelente dossier. A receção no aeroporto, e a viagem que o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa fez de autocarro para Paris, contribuíram, através da presença de vários jornalistas, para o sucesso desta inscrição no público geral. A partir do momento em que foi inscrito, deu-se uma profunda alteração na forma como o bem foi percecionado. A viagem para Paris foi fundamental. Um ato fundacional. Portugal acompanhou com interes- se a viagem através da rádio e dos jornais. Criou-se a expectativa. E a TAP percebeu, antes de todos, como este seria importante ao nível do marketing.

A oferta do voo de regresso e a forma como se saiu da zona de desembarque, constituiu um jogo publicitário e uma experiência de como o imaterial poderia integrar uma estética capitalista. É no aeroporto que muito muda. A espera, o jogo dos marketeers, a perceção dos media… Daqui até ao espetáculo no CCB, um par de meses depois, onde se encheu a grande sala, foi um crescendo.

No meio de tudo aquilo, de toda a alegria, uma pergunta para mim fundamental perseguia-me: O que mudou no cante entre uma partida singular, e anónima, e a chegada “apoteótica” da comitiva ao aeroporto e aquele momento no CCB?

Penso que essa é uma pergunta que importa fazer. A chamada patrimonialização do cante através da sua inscrição, muitas vezes designada como o “selo”, o “património mundial”, a “classificação”… deseja confundir a convenção de 2003 com a convenção de 1972 para património mundial. Há o desejo de confundir uns e outros bens reconhecidos pela UNESCO, mas tão diferentes em si.

A convenção de 1972 propõe-se inscrever bens cujo valor é universal. A convenção de 2003 procura mostrar a diversidade e a riqueza do génio humano, querendo – importa afirmar – contribuir para o equilíbrio da balança de inscrições por este órgão supranacional.

Esta confusão, levou a patrimonializações baratas e fáceis de colocar no mercado político e económico, em particular no mercado do turismo local, regional e nacional, que vê no chamado património cultural imaterial (PCI) um elemento que fortalece a oferta, e no qual, ao contrário do património mundial, ou ligado à natureza, como os geoparques ou a biosfera, não implica grande investimento.

A par deste acrescentar no menu turístico, abriu-se o cante à criação artística que, a partir da fórmula “o bem tem que evoluir”, muitos viram matéria para projetos artísticos. Fica a pergunta, nuclear em tudo isto, o que ganharam com a inscrição os grupos, logo os cantadores, para lá da dignificação? Não acredito que 90% dos detentores que assinaram a concordância com a candidatura tenham recebido alguma benfeitoria prática. Pelo contrário. Preteridos nos espetáculos, assistindo a um cante cada vez mais fulanizado, veem esta prática performativa caminhar para um outro tempo.

A par de uma curadoria cada vez mais impositiva e da refolclorização, retomando, ou reforçando mesmo, figurinos vindos do fascismo, sem entidades fortes que o salvaguardem, corre o risco de se tornar uma singela memória. Uma banalidade regional. O melhor exemplo está na não aplicação do plano de salvaguarda, ou na difícil comunhão, em Portugal, entre o património material e o imaterial.

No Sul, importa ver como as instituições o olharam, ou na habilidade diária de fazer desaparecer a antropologia, substituindo esta por algo indefinível a que agora se chama acriticamente imaterial. Mas o que é o património cultural imaterial? A resposta é simples: é aquela manifestação que tem um plano de salvaguarda, suporte de uma estratégia para identificar e dignificar, contribuindo, assim, para a sua sustentabilidade e para a sua transmissão.

Mas a maior falha é a ausência dos detentores na construção da estratégia e da política cultural em torno do PCI. Enquanto assistimos hoje a um ‘etnotráfico’ no cante, bem como noutros bens, esquecemos que a convenção de 2003 não é coercitiva, antes democrática, porque o detentor é o decisor deste. A pergunta então será: Os cantadores e os grupos são donos do cante? Esta é a pergunta fundamental que importa fazer nos 10 anos depois deste ter recebido um “selo” da Unesco.

Mas a mais importante é: o que pode o imaterial fazer para o diálogo entre povos, culturas e civilizações? O valor universal do cante está na afirmação de que este combate a exclusão e contribui para a coesão social. Isto foi o pilar do pedido. É esta ausência que tornou banal aquilo que era excecional. Falo do cante às vozes, um bem cultural hoje à beira da extinção.

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