A aventura de Brito Pais: De Vila Nova de Milfontes a Macau, pelo ar

Há um século, Brito Pais, um dos pioneiros da aviação portuguesa, descolava de Milfontes num Breguet 16 e iniciava um “raid aéreo” que terminaria dois meses e meio depois num cemitério em Macau. O relato da viagem foi agora reeditado, numa obra com coordenação científica de Isabel Morujão. Luís Godinho (texto)

Acerimónia meteu bispo e tudo. Horas antes do Breguet 16, batizado como “Pátria”, descolar de Vila Nova de Milfontes, foi abençoado pelo bispo de Beja, D. José do Patrocínio Dias. É Sarmento de Beires quem descreve a cerimónia, em “De Portugal a Macau”, livro publicado em 1945 e agora objeto de reedição. Sarmento de Beires, note-se, conhecia perfeitamente todos os contornos da aventura. Oficial do exército, haveria de descolar com Brito Pais, acompanhando-o em toda a viagem.

“Praiazinha humilde dos confins do Alentejo”, é assim que descreve Milfontes nesse ano de 1924, terra com “duas dúzias de casas pobres, atiradas sem ordem para junto da embocadura do Mira, que beija silenciosamente os alicerces caiados de um arruinado castelo do século XVII”. A estação de caminho-de-ferro ficava a uns 50 quilómetros, a estrada mais próxima a cerca de 15, assim ajudando a criar “um remansoso cantinho provinciano, onde a civilização quase não chegou”.

Por ali, assinalava ainda o autor, “há só caminhos sinuosos, grutas cavadas na falésia abrupta, o rio, a serra traçando no azul do céu a linha quebrada das suas arestas, e o mar, enchendo o espaço do seu respirar atlântico”. Dir-se-ia, talvez, que mais não seria preciso, ainda que o “carácter íntimo e modesto” do local, a par do “magríssimo pecúlio” que conseguiram reunir para a viagem, tivesse constituído razão para a escolha de Milfontes como local de partida.

“A atmosfera de descrença, de dúvida, quase de ironia, que em Lisboa se respirava impelia-nos a ocultar de todos a data da largada”, assinala Sarmento de Beires, sublinhando ainda que aquela pista “era a única, em Portugal, que permitiria, em segurança, a descolagem do avião completamente carregado”, pois com 1500 litros de gasolina “no ventre” precisaria de “terreno largo, para correr e tomar alento para tamanha empresa”.

Os primeiros voos de ensaio realizaram-se a partir da Amadora entre finais de 1923 e 2 de abril de 1924, data em que o aparelho aterrou em Vila Nova de Milfontes, onde seriam ultimados os pormenores para a longa viagem de 16 mil quilómetros.

Para a escolha do local contribuiu igualmente o facto de António Jacinto da Silva de Brito Pais, um aviador português que à época já tinha cumprido missões em Moçambique, Angola na I Guerra Mundial, ser natural da vizinha aldeia de Colos. No dia seguinte ao da chegada do “Pátria”, ao início da tarde chegava o bispo, “que acedendo ao pedido de Brito Pais de quem era amigo e antigo companheiro da frente de batalha em França, vinha batizar o avião”.

Assim se fez no dia seguinte, debaixo de choviscos. “Na presença de um centenar de pessoas, o aparelho foi batizado, religiosamente primeiro, dionisicamente depois, quando a madrinha, Maria do Céu, irmã de Brito Pais, quebrando no cubo da hélice a consagrada garrafa de champanhe, atirava num grito cheio de emoção às emanações salinas do mar o nome escolhido: – Pátria!”, escreve Sarmento de Beires.

O mau tempo agravou-se. Os aguaceiros “alagavam de quanto em quando a planície”, a “fúria de ventania açoitava” as asas do avião “com uma ferocidade que a todos confrangia e torturava”, os dias passavam “nevoentos, borrascos”, provocando o “enervamento” da equipa. Era preciso tomar decisões. “Como o avião não podia conservar-se indefinidamente ao desabrigo (visto não haver hangar em Vila Nova de Milfontes), resolvíamos partir na manhã seguinte, impreterivelmente, decididos a arribar a Sevilha ou Málaga, na impossibilidade de prosseguir na direção de Tunes”.

À volta de Brito Pais e Sarmento de Beires, escreve este, “sentia-se amor, esperança, receio”. Os olhos viravam-se para o céu, “numa súplica silenciosa de bom tempo”. O avião, “num descampado imenso, preso à terra por cordame de navio, estremecia a cada rajada”. Depois, pela tarde, o vento acalmou. “Ao jantar, na intimidade afetiva da família de Brito Pais e de alguns amigos, uma atmosfera comovida pairou”. O silêncio desceu sobre a Serra do Cercal.

No dealbar do dia seguinte, uma égua, “puxando uma frágil carrinha alentejana”, levou os dois homens “pelo caminho sinuoso e estreito” até à pista. A descolagem ocorreu às 06h02 do dia 7 de abril de 1924. “O Mira, muito enrodilhado entre as margens, lá fica a chorar, a correr, azul ferrete”. Seguem-se dias tortuosos de viagem, relatados ao pormenor, incluindo um acidente que destruiu o aparelho e ia deitando tudo a perder, e a chegada a Macau, onde um forte temporal obrigou à aterragem num cemitério chinês.

A viagem do “Pátria”, assinalam Isabel Morujão e Rita Pino Brito no prefácio do livro, “foi um extraordinário feito de engenharia aeronáutica e de aviação pioneira, com reconhecimento internacional”. Durante os quase três meses que durou a travessia, acrescentam, “o país inteiro viveu suspenso das notícias que chegavam sobre o sucesso dos seus aviadores”.

“DE PORTUGAL A MACAU (A VIAGEM DO PÁTRIA)”

J. SARMENTO DE BEIRES COORDENAÇÃO CIENTÍFICA DE ISABEL MORUJÃO EDIÇÕES AFRONTAMENTO 432 PÁGINAS – 19,50 EUROS

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