Alcácer do Sal: ‘villa’ escondia mosaico com luta de centauros

Uma domus romana escavada em Porto da Lama, Alcácer do Sal, revelou um mosaico com uma luta entre centauros que é inédito em Portugal e Espanha. Para agora “perceber a configuração da villa onde os mosaicos foram encontrados, uma equipa de arqueólogos prepara-se para voltar ao terreno. Júlia Serrão (texto) Raul Losada (fotografia)

Originalmente seria maior, mas foi encontrado com 4,50 metros de comprimento por 2,40 de largura o mosaico romano onde pode ver-se uma luta de centauros: com um maior centrado a atirar uma pedra a um possível animal selvagem que, por sua vez, ataca um segundo centauro. No total são três as figuras mitológicas com corpo de cavalo e dorso e cabeça humanos.

O mosaico terá sido executado entre os finais do século III e o início do século IV, segundo Margarida Figueiredo e Heloísa Valente dos Santos, as arqueólogas da Archeo Estudos – Investigação Arqueológica, empresa contratada para fazer a escavação, no seguimento de uma minimização de impacto integrado numa obra de melhoramento do canal da rega de Santa Catarina.

O achado único teve lugar na primavera de 2023, numa zona rural muito perto da aldeia de Santa Catarina de Sítimos. A villa onde foi descoberto foi identificada pela primeira vez em 1948, pelo arqueólogo Abel Viana. Nessa altura “já estava muito destruída”. Com a reabilitação dos canais de rega “sofreu ainda mais danos”, comenta Margarida Figueiredo, que dirigiu os trabalhos de campo.

“O que encontrámos foi a domus [residência] do senhor desta villa, e descobrimos alguns compartimentos, entre os quais um que tem um painel de mosaico retangular com uma luta de centauros que é inédita na Península Ibérica”. Iconograficamente, o centauro central é muito semelhante ao encontrado na villa Adriana, em Tivoli, Itália (120-130 d.C).

“Trata-se de cânones itálicos que se vão replicando muito possivelmente em forma de catálogo”. Ao contrário das villae romanas do Algarve do mesmo período, que na altura tinham “muitas influências do norte de África, estas vão buscar coisas muito mais interiores, de Itália”, sendo a rota feita através “do rio e de terra, e de Mérida, a capital da Lusitânia”. Se acontece com todas as villas do Sado não se sabe, mas a arqueóloga diz que seria uma matéria interessante de estudo.

Nesta villa romana em Alcácer do Sal, uma das primeiras a ser escavada, foram ainda encontrados um corredor e uma sala com pavi- mento em mosaico: no mosaico da sala contígua aos centauros, podem ver-se dois golfinhos afrontados com um tridente entre eles, intercalados com uma decoração vegetalista.

O mosaico com a luta dos centauros foi encontrado num compartimento que inicialmente se pensou “ser um triclinium”, a sala de jantar romana. Mas depois, na sequência da digressão de Margarida Figueiredo por vários países no âmbito da divulgação destes mosaicos em diferentes congressos, as arqueólogas chegaram à conclusão que não deveria ser um triclinium, mas sim uma espécie de hall de entrada de uma outra sala, que neste caso será a dos golfinhos.

“Esta terá uma dimensão maior do que a dos centauros, apesar de muito cortada. O que nós temos são só dois frisos laterais e uma ínfima parte do contorno do medalhão central”. A arqueóloga adianta que há “milhares de hipótese de motivos centrais” para a sala onde foi encontrado o mosaico dos golfinhos.

Outro pormenor interessante do painel dos centauros é “a sua policromia”, enquanto os restantes são a preto e branco. Todos terão sido utilizados “numa mesma altura, mas o mosaico da sala dos golfinhos e o mosaico do corredor são composições mais recentes”, aponta, dando conta de uma estratigrafia que permitiu verificar “a sobreposição de muros nos limites este e sul do mosaico dos centauros”.

Estes vão ser os primeiros mosaicos sadinos a ser estudados. Mas a investigadora diz que “a profusão de mosaicos romanos sadinos” poderá justificar a presença de “oficinas locais com os tais catálogos”, que eram replicados por “artesãos” especializados. Também será “interessante perceber” a proveniência do material das tesselas [pedras pequenas que compõem o mosaico], “que aqui são sempre calcário e granito”. Um estudo “mais holístico” poderá trazer algumas respostas.

Outro momento significativo das escavações foi a descoberta de um pavimento em lajes de mármore num dos compartimentos, “quase todo removido”, frisa Heloísa Valente dos Santos. Os resultados ainda são provisórios, mas as arqueólogas pensam tratar-se da “área central da casa”.

Heloísa Valente dos Santos explica que depois da intervenção arqueológica, processou-se “à conservação preventiva dos mosaicos” no local, com vista a consolidá-los, sendo depois tapados com manta geotêxtil e selados com argila expandida e inertes.

“Vai ter uma vedação à volta com uma placa informativa”. Daqui a cinco anos, quando a villa estiver toda exposta, “a selagem pode ser levantada e os mosaicos estarão conservados para verem a luz, e até haver uma reinterpretação do que ali está”. A arqueó- loga afirma que a decisão de selar o sítio não foi fácil nem consensual, mas continua a “parecer a melhor solução, tendo em conta que não se sabe o que vai acontecer ao sítio: deixá-lo à vista era quase sinónimo de destruição, até podia não ser intencional mas própria do tempo”.

A IMPORTÂNCIA DE SALACIA

Importante desde os tempos pré-históricos, Alcácer do Sal ganha ainda mais relevo a “partir da Primeira Idade do Ferro”, nota Margarida Figueiredo. Graças à sua localização, entre o Atlântico e o Sado, “faz a ligação entre o interior e o litoral”.

Neste contexto, durante o período romano, em que adquire o nome Salacia (Urbs Imperatoria), instalam-se ali ricos proprietários que constroem as suas villae. A arqueóloga fala de uma rede de villae, fornos e grandes olarias concentrados ao lado do Sado e dos seus afluentes, que estariam em conexão. A cerca de dois quilómetros de Porto da Lama, na aldeia de Santa Catarina de Sítimos, foi identificada uma outra villa associada à ribeira de Sítimos, que “ainda hoje é navegável com pouca água, sendo por isso um circuito muito utilizado”.

De regresso a Porto da Lama, as investigadoras perguntam-se o que se faria naquela villa. As escavações mostram que foi construída em meados do século I e utilizada até ao sécu- lo IV/V e que terá sofrido várias remodelações, estando três identificadas. Mas baseando-se nos materiais que foram recolhidos à superfície em volta, Margarida Figueiredo e Heloísa Valente dos Santos acreditam que a ocupação se tenha estendido pelo século V.

Foram também encontrados, em contexto de prospeção, pesos de lagar, e um fragmento de marco miliário – coluna com inscrições gravadas, destinada a marcar distâncias no percurso das principais estradas – que “demonstra a importância da via romana que passava entre Salácia e Ebora, nos inícios do século III”, frisa Margarida Figueiredo.

Agora o objetivo da equipa é voltar ao terreno por 15 dias, na Páscoa deste, para perceber a configuração da villa de Porto da Lama, explica Margarida Figueiredo. As arqueólogas esperam que outros financiamentos possam ter lugar, de forma a dar continuidade a um projeto que ainda se encontra no início.

DOCUMENTÁRIO

O excecional achado deste mosaico romano com uma rara representação de uma luta de centauros foi objeto de um documentário realizado por Raul Losada e que tem sido apresentado em diversos festivais internacionais. Com narração de Zé Valdeira e recriação arqueológica 3D de César Figueiredo, o documentário inclui depoimentos de Margarida Figueiredo, arqueóloga e antropóloga responsável pela escavação, Marisol Ferreira, arqueóloga do município de Alcácer do Sal, Ana Patrícia Magalhães arqueóloga que estuda a presença romana no Baixo Sado e Cátia Mourão, historiadora de arte e especialista em mosaico romano.

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