Como surgiu a Cercicoa?
É a história normal das Cercis. A seguir ao 25 de Abril foi criado este movimento para encontrar uma solução para os miúdos em idade escolar, que não tinham acesso ao ensino por causa da deficiência e então surgiram estas cooperativas. Até aí as crianças ficavam em casa, estavam arreda- das do ensino regular. Já existiam algumas organizações a nível nacional que trabalhavam na área da reabilitação, mas o grande movimento nesta área surgiu após o 25 de Abril. A Cercicoa, sendo que o “coa” quer dizer Castro Verde, Ourique e Almodôvar, surgiu precisamente nessa altura, há 45 anos, integrando alguns professores e pais de filhos com deficiência.
E foi criada com que valências?
Só com escola de ensino especial. Este movimento cooperativo era de ensino, só tinham escolas primárias para pessoas com deficiência. Aos olhos dos nossos dias, haver crianças com deficiência sem acesso ao ensino seria impensável, era uma discriminação impensável. Havia aquele instinto, digamos, protetor da família, era quase uma vergonha ter um filho de deficiência, isso chegava a ser entendido como uma fraqueza da família.
As Cercis ajudaram a mudar essa menta- lidade?
Ajudaram. Por um lado porque essas crianças começaram a ter acesso ao ensino, a sair de casa, começaram a aprender. A partir desse momento e apesar de ainda ser um espaço segregado, exclusivo para pessoas com deficiências, começaram a surgir outro tipo de necessidades. Essas crianças cresceram, foi necessário encontrar outro tipo de respostas e as organizações depararam-se com novas necessidades e chegámos aos dias de hoje com uma panóplia enorme de respostas.
Entre esse momento inicial de uma cooperativa de ensino e os dias de hoje houve um grande salto, são cerca de mil utentes.
Para ficar com uma ideia temos neste momento 15 respostas sociais, a nível nacional somos das Cercis com maior oferta, o que se deve à circunstância de estarmos num território onde existem menos respostas que nas grandes cidades. O nosso trabalho é muito semelhante ao dos outros, mas o território obriga a que tenhamos alguma criatividade para responder a necessidades. E há também algum instinto de sobrevivência, pois pre- cisamos de escala para alcançar solvibilidade e ter alguma saúde financeira. Isso obriga a criar uma série de respostas integradas e que possam também ser articuladas com outros parceiros. Curiosamente, a resposta que não existe é a escola de ensino especial criada em 1979, pois está absorvida pela escola pública.
É assim em todo o país?
Ainda há muitas escolas de ensino especial nas organizações e nos últimos cinco anos temos verificado que até tem aumentado o número de alunos. Isto porque a resposta do ensino inclusivo continua a ser manifestamente insuficiente e em muitas escolas é até bastante segregadora. O que se fez foi transferir as escolas de ensino especial para dentro dos agrupamentos e foram criados guetos onde estão os alunos deficientes, sem convívio com os outros. E nalguns casos em que os alunos frequentam as turmas têm muitas dificulda- des em acompanhar, pois não há professores de ensino especial num número suficiente.
A resposta do ensino público está desa- justada?
Não necessariamente… a ideia é nobre, agora é evidente que falta acompanhamento do Ministério de Educação. Portugal é um país muito rico em legislação, não falta nada, mas temos dificuldade em implementar, em fiscalizar. Muitas vezes legisla-se para se cumprirem regras e metas comunitárias, mas depois, na prática, as coisas não funcionam. Sabemos de situações que, ainda hoje, passados 20 anos de escola inclusiva, estão praticamente no mesmo nível que começaram.
Tem insistido na necessidade de uma descriminação positiva destas estruturas situadas mais no interior.
Tem de existir. As próprias estruturas sedeadas nas zonas urbanas, como Beja ou Évora, têm mais benefícios do que as que se encontram em meios mais pequenos, como o nosso. Por exemplo, no âmbito da saúde. Dou-lhe um exemplo muito prático, todos os dias vamos de Almodôvar a Beja ou a Évora para consultas, percorremos milhares de quilómetros, os encargos são superiores, mas o financiamento é igual.
Pelo que a forma de financiamento deveria ser revista?
Deveria ser revista no âmbito de uma discriminação positiva ao nível do financiamento para o interior, não apenas no Alentejo. A dispersão destes territórios de baixa densidade acarreta custos superiores. Para ir buscar uma ou duas pessoas a um monte fazemos 20 ou 30 quilómetros e perdemos uma hora no caminho. Numa zona urbana percorremos 10 quilómetros e transportamos 30 pessoas. É evidente que a Constituição e a igualdade de oportunidades estabelece que ninguém pode ficar para trás, sendo assim têm de existir financiamentos adequados a cada região do país. Caso contrário fechamos o interior e vamos todos para o litoral, como progressivamente tem vindo a acontecer.
É uma preocupação que não tem existido?
Não tem havido por parte da Administração Central um incentivo para as pessoas se fixarem no interior e nesta área social, em concreto, está-se a tratar por igual o que não é igual. E esta diferença acontece até ao nível dos municípios, entre as sedes de concelho e as freguesias rurais. Os miúdos que residem na sede de concelho têm muito mais vantagens, a começar pelo horário a que têm de se levantar para ir à escola, e depois pelo acesso à cultura, ao desporto, podem ir à piscina, ao hóquei, ao futebol… os das freguesias não têm essa oportunidade, pois nem sequer têm transporte público.
Apesar de não existir essa discriminação positiva, o financiamento do Estado a este sector social é suficiente?
É manifestamente insuficiente. O orçamento para 2024, tendo em conta o plano de atividades, previa um saldo negativo de cerca de 300 mil euros. A nossa despesa anual é, sobretudo, em recursos humanos, corresponde a cerca de 85%, o que é muito numa análise puramente economicista. Agora, isto não é uma empresa, trabalhamos para as pessoas e temos de o fazer com pessoas. Para encontrar essa diferença temos de ser criativos, não podemos ficar a lamentar-nos por não haver dinheiro.
Qual a solução?
Tem sido a formação para dotar a equipa de competências no âmbito da angariação de fundos, do marketing, da elaboração de projetos. O ano passado conseguimos o apoio de algumas empresas e, através disso, temos conseguido reduzir um pouco o impacto da insuficiência das transferências do Estado. Essas transferências são manifestamente insuficientes para conseguirmos dar resposta, também pelo aumento, com alguma expressão, do salário mínimo que vai impactar os restantes salários, os impostos, etc. Não conseguimos ter uma previsibilidade financeira que nos garanta alguma estabilidade e segurança, quer dizer, andamos sempre na corda bamba.
Só com o apoio do Estado a porta já estaria fechada?
O apoio do Estado não chega. É evidente que poderíamos ter uma resposta muito mais redutora do funcionamento da Cercicoa, como muitas organizações têm, só com três ou quatro respostas sociais, mas as pessoas têm necessidades a diversas níveis e somos a única instituição neste território que as pode ajudar a solucionar.
A nível das respostas sociais da Cercicoa, há alguma que destaque, talvez por ser mais recente?
Posso destacar, por exemplo, este local onde estamos a conversar, que corresponde a duas residências de autonomização e inclusão. São estruturas inovadoras. A primeira que criámos foi em 2012, já temos experiência com este tipo de estruturas, que permitem às pessoas viverem de forma autónoma, com apoio mínimo. São respostas integradas na comunidade, a integração faz-se estando dentro da malha urbana. São dirigidas a pessoas com deficiência intelectual ou doença, que a sua condição de autonomia lhes permita viver com alguma independência.
Ainda que venham a necessitar de outro tipo de apoio?
Sim, há muitas pessoas que vão perdendo capacidades e que irão necessitar de outro tipo de respostas, mas durante o período em que estão ativas, produtivas, estas residências permitem que tenham acesso à vida em comunidade, como qualquer outra pessoa, com um apoio mínimo. Chegam do trabalho, ao final da tarde vão à piscina ou à esplanada, e têm aqui apoio a nível de acompanhamento psicológico, alguma vigilância durante o dia, controlo da medicação… há protocolos muito exigentes que permitem a essas pessoas manterem-se autónomas e independentes. Sem isso a regressão é muito rápida.
E há os lares residenciais…
… estruturas que têm as pessoas com doenças muito graves, a que chamamos centros de promoção do bem-estar e da dignidade. Temos de ter o cuidado de proteger ao máximo aqueles que não têm a voz. Vemos constantemente, nas notícias, situações de maus tratos e as pessoas mais vulneráveis são as que não se queixam, com problemas graves de paralisia cerebral, por exemplo. Enfim, são pessoas que necessitam sempre de cuidados prestados por terceiros e os lares residenciais para pessoas com deficiência servem exatamente para isso.
Qual a diferença para os outros lares?
Devem ter um conjunto de respostas, um conjunto de serviços que permita que as pessoas tenham uma dignidade permanente no envelhecimento, ou no agravamento da doença. Isto funciona com planos individuais, pode haver duas pessoas com a mesma doença e com a mesma deficiência que tenham planos completamente distintos. Refiro-me especificamente a cuidados no âmbito da fisioterapia, prevenção de úlceras de pressão, prevenção de outro tipo de doenças relacionadas com o facto de a pessoa estar muito tempo parada.
É aqui que se enquadra o teatro, que também promovem?
O grupo de teatro surgiu em 2012 e o objetivo inicial foi criar sessões de movimento, pois tínhamos um grupo de ginástica mas as pessoas não queriam ir para a ginástica. Quando chegava a altura, ou doía-lhes a perna, ou não tinham equipamento, ou os ténis ficavam apertados… não queriam, a ginástica era quase uma obrigação e então tivemos de inventar uma outra solução, que foi o teatro, para que o pessoal pudesse fazer algum exercício de uma forma divertida.
Quando é que o António Matias chegou à Cercicoa?
Vim em 1996, numa circunstância inesperada. Na altura estava a trabalhar no sector de formação profissional, em Aljustrel, tinha terminada a licenciatura há pouco mais de um ano, uma pessoa conhecida telefonou-me a dizer que tinha de vir para aqui, pois precisavam de um técnico na área social. Eu era muito jovem, tinha outros planos, vim na perspetiva de estar pouco tempo, mas fui-lhe tomando o gosto. Percebi logo que havia muita coisa a fazer, o modelo de funcionamento era então muito precário, com poucos recursos… isto na altura do ‘boom’ da entrada na União Europeia, com muitas ofertas ao nível do Fundo Social Europeu, pelo que começámos a fazer projetos. Dois anos depois aceitei o convite de ir para a direção e cá estou.