“Nem tudo o que parece é” diz o povo, com a ambiguidade certa do uso económico das palavras para servir vários gostos. E que a exegese dos aforismos, exercício nada ocioso, ajuda a confirmar com mais argumento do que ligeireza.
Nas relações de poder, o uso da verba importará mais, desde há muito, do que o argumento verbal. No caso em apreço, ultrapassado o (quase) uníssono louvor ao Vagar vencedor, no momento de fazer as contas o diapasão começou a afinar mais fino. Ainda assim, não convém esquecermos do que falamos quando falamos de uma cidade que quer ser, e será, uma “capital europeia da cultura”.
Assente em políticas de proximidade, de uma cidade europeia faz-se por 365 dias uma capital. A cidade surge como unidade mínima comum de intervenção na Europa das Regiões, para onde convergem, na longa preparação para a metamorfose, uma boa fatia dos investimentos também locais e nacionais, na área da cultura.
Os sítios oficiais, como a página ‘web’ Eurocid do Ministério dos Negócios Estrangeiros, explicam o princípio do programa, de 1995 e a partir do berço Atenas, como uma forma de “valorizar a riqueza e a diversidade das culturas europeias, assim como as características comuns, e contribuir para um maior conhecimento mútuo dos cidadãos europeus”. O objetivo primeiro é, assim e bem, do domínio do imaterial e simbólico.
A explicação sobre o investimento material, seja em iniciativas, estruturas ou capacidades criadas, esperava, nesses tempos iniciais como agora, que as verbas fossem “utilizadas como base para uma estratégia de desenvolvimento cultural sustentável nas cidades em questão, garantindo os efeitos a longo prazo da manifestação”.
Com o programa Europa Criativa, 20 anos depois, juntou-se mais um objetivo, espelho do ‘mindset’ então em voga: o de “salvaguardar, desenvolver e promover a diversidade cultural e linguística da Europa, o património cultural europeu e reforçar o setor audiovisual, para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo”.
Com estes princípios escritos na pedra, a cultura apresenta-se bem vista como conceito genuinamente de cruzamento: do ‘habitus’ como conjunto de competências e recursos comunitários que regulam a relação das pessoas com o (seu) mundo (Bourdieu, sociólogo francês, 1930- 2002), pensados a partir de padrões que a antropóloga pioneira, a americana Ruth Benedict (1887-1948), definiu na sua ciência do costume.
E prosseguindo até à, agora já quase só simbólica, sinonímia de cultura e erudição, que acabará por divergir em poderosos afluentes do campo do lazer, com criadores e públicos de geometrias variáveis. Tudo analisável e estudado para que ócio e negócio se transformem em verbo e verba, e sejam um par para uma explosão genesíaca, ao estilo do choque da matéria com a não-matéria, tal como ensinava Hubert Reeves (astrofísico canadiano, 1932-2023) no seu “Um Pouco Mais de Azul”, de 1981.
Quando se decide enveredar pela aventura de concorrer a capital europeia do que quer que seja, para além do prestígio, expresso mais por palavras mesmo que resultem de números, importará que os aventureiros escolham boas companhias, mais ou menos vizinhas.
O “ser de cá” é uma relação de vizinhança acarinhada por aqui. As pessoas conhecem-se, ou conhecem quem conheça, partilham “chão comum” e “lugares de fala”, acreditam que diminuem os riscos de distorções e corrupções do que se acha ser genuíno e único. Única, certamente, será a vantagem de reorientar pré-conceitos sobre si próprio, aliviando-lhes a negatividade e elevando-os a “imagem de marca”. Uma perspetiva e uma solução otimistas que com o Vagar se comprovou vencedora.
Consultando o chamado ‘bid book’ de seleção ficamos a conhecer, ou pelo menos mais bem informados sobre, e cito a página da Câmara Municipal de Évora, “o conceito, a estratégia, o programa cultural e artístico, a dimensão europeia e o impacto de Évora 2027”.
Entre quadros e esquemas, há explicações cuidadas sobre quem e porquê se envolveram várias personalidades e instituições em muitos e variados projetos, bem resumidos e até orçamentados. Aconselha-se a leitura a quem queira falar sobre a programação, por exemplo, e de caminho fique a saber mais do que o que ouviu outros dizerem.
Perceber-se-á o trabalho que dará pôr a letra em ação, quer a quem já se sabia envolvido quando da candidatura, quer a quem chegar para reger uma miríade de projetos. Como também há, no documento, pedaços de prosa cativante, ao ouvido dos de cá, sobre o resto do mundo e a originalidade do Vagar. Cito uma: “Vagar: uma (outra) arte de existência”.
A perspetiva de construção da ideia a partir de um “olhar etnográfico” que o ‘bid book’ e a equipa responsável pela candidatura demonstraram, corre riscos de cair em desuso se a tendência for recusar a usurpação do nosso lugar de fala pelos outros. Mas poderá continuar a ter amparo contemporâneo, e não vir daí mal ao mundo, se alguém de fora vier pensar connosco sobre nós.
Já Ruth Benedict concluía que todas as culturas partilham traços de personalidade definidores e há assuntos sobre os quais podem muito bem falar por nós que nós próprios não o faríamos melhor. Mas só alguns assuntos. No fundo, tantos menos quantos orgulhosamente únicos nos sentirmos no mundo. Feitios, que é quase o mesmo que dizer traços de personalidade.
Certo é que o tempo de tecer o Vagar se aproxima depressa, exige esforços e precisa muito daquilo que faz girar o mundo e não é nem a gravidade, nem o ódio ou muito menos o amor: é o dinheiro. Sobretudo o que não é deste ou daquele e, por isso, é de todos. E não é preciso vir a ciência explicar outra vez que a tendência é não ser dinheiro de ninguém e o descuido poder estar ao virar da esquina. Mesmo que se vire a esquina devagar.
Por muito que outros traços de personalidade tendam a criar, com estas coisas em grande, gente desconfiada porque “escaldada”, da leitura do ‘bid book’ e da atual situação, e ler é parte da profissão onde tento criar adeptos para a leitura também do mundo, ficou-me uma grande vontade de chegar a 2027.
E poder escolher entre muita cultura a acontecer, ainda mais (e já não era pouco) do que no tempo em que tive responsabilidades nas políticas culturais de Évora e conhecia bem o seu vivo tecido cultural, resistente naqueles piores tempos de adversidades. Esperando que nos habituemos a essa roda-viva e a mantenhamos, para continuarmos a querer tanto como haverá nesse ano de Évora Capital Europeia da Cultura.
Termino como comecei no título, com uma pergunta. A que deveria iniciar novos tempos de viver a cultura, mas a que só devemos começar a responder em 2027, lá para os seus últimos dias. E cuja resposta virá, com vagar, talvez uma década depois: o que é uma Évora cidade de cultura.