A transição energética é, indubitavelmente, um imperativo dos nossos tempos. Está em causa não apenas a sustentabilidade ambiental, mas também a autonomia energética e a competitividade económica do país. Contudo, a forma como esta transição está a ser implementada, particularmente no que diz respeito à instalação de grandes centrais fotovoltaicas no Alentejo, levanta questões sérias que merecem reflexão aprofundada.
O recentemente publicado estudo do Grupo de Trabalho para a Aceleração das Energias Renováveis (GTAER), elaborado pelo Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), propõe-se identificar as áreas menos sensíveis do território nacional para a implantação de energias renováveis. Este documento, que poderia ser um primeiro passo para um planeamento coerente, acaba por revelar, nas suas conclusões relativas ao Alentejo, algumas limitações que importa analisar criticamente.
A título de exemplo, o estudo identifica apenas um por cento do território de Évora como “áreas menos sensíveis” para a instalação de centrais fotovoltaicas. Esta percentagem, que parece modesta, adquire uma dimensão preocupante quando confrontada com os números dos projetos atualmente em curso. As três megacentrais planeadas para o concelho – da Incognitworld3, da Hyperion Renewables Évora e da NewCon40 – representam uma potência total instalada de cerca de 1000 megawatts (Mw), quase 1.560.000 painéis, ocupando mais de 1300 hectares, o que corresponde, precisamente, a cerca de um por cento do território do concelho.
A coincidência destes números é reveladora: estamos a planear ocupar, praticamente de uma só vez, a totalidade das áreas menos sensíveis do concelho de Évora. E isto sem um plano de ordenamento adequado, sem uma reflexão sobre a proporção desejável entre produção centralizada e descentralizada, sem uma avaliação rigorosa dos impactos cumulativos na paisagem, na biodiversidade e no património.
A situação é tanto mais preocupante quanto sabemos que a opção pela concentração de centrais na zona norte e nordeste de Évora é justificada pela proximidade da Subestação da Graça do Divor. Este critério técnico e económico sobrepõe-se a todos os outros, ignorando que seria perfeitamente possível a construção de subestações ao longo das linhas de 400 quilovolts (kV) que saem desta subestação, permitindo a instalação de centrais em zonas menos impactantes.
Um aspeto fundamental, e frequentemente negligenciado no debate público, é a definição clara e fundamentada das necessidades reais de produção fotovoltaica. Quantos megawatts de potência Portugal precisa efetivamente de instalar nos próximos anos? Quantos desses megawatts devem ser produzidos no Alentejo? Em que prazos? As metas definidas no Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) são desejáveis, mas são realistas? E, sobretudo, estão devidamente fundamentadas em estudos de consumo, de capacidade de armazenamento e de transporte de energia?
O que parece faltar é uma definição transparente dos objetivos, que permita a todos os intervenientes – autarquias, empresas, cidadãos – compreender a dimensão do esforço que está a ser pedido a cada região, e as razões que o justificam.
Um outro aspeto crucial é a relação entre produção centralizada (grandes centrais) e produÇão descentralizada (painéis em edifícios, comunidades energéticas, autoconsumo). O estudo do GTAER não aborda esta questão, mas ela é essencial para uma transição energética equilibrada.
A produção descentralizada, para além de reduzir a necessidade de grandes centrais, tem vantagens significativas: menor impacto paisagístico, maior eficiência (menos perdas na transmissão), criação de emprego local, democratização do acesso à produção e consumo de energia.
Cada concelho do Alentejo deveria ter um estudo detalhado sobre o potencial de produção descentralizada, incluindo a instalação de painéis em edifícios públicos, industriais e comerciais, em zonas urbanas degradadas, em parques de estacionamento, ao longo de autoestradas, etc. Só após esgotadas estas possibilidades faria sentido avançar para a ocupação de terrenos rurais.
O estudo do GTAER, ao definir as áreas menos sensíveis para instalação de centrais fotovoltaicas, parece não ter em conta as especificidades de cada sub-região do Alentejo.
No Alentejo Central, por exemplo, a presença de um património cultural riquíssimo, incluindo a cidade de Évora (Património Mundial da Unesco e futura Capital Europeia da Cultura em 2027), exigiria uma avaliação mais rigorosa dos impactos visuais e uma maior proteção das paisagens culturais.
No Alto Alentejo, a presença de importantes áreas de montado e de zonas de elevado valor ecológico, como o Parque Natural da Serra de São Mamede, deveria condicionar fortemente a instalação de grandes centrais.
No Baixo Alentejo, a tradição agrícola e a presença de culturas de regadio representam valores económicos e culturais que não devem ser subestimados.
No Alentejo Litoral, a pressão turística e a proximidade de áreas protegidas costeiras devem ser tidas em conta na definição de áreas adequadas para energias renováveis.
A avaliação da adequação das propostas do GTAER a cada uma destas sub-regiões exigiria um trabalho detalhado, que incluísse a consulta às autarquias, às entidades regionais e às associações de defesa do património e do ambiente.
Face ao exposto, e tendo em conta os pro- jetos já em curso, é urgente:
(i) – Clarificar objetivos: definir de forma transparente quantos MW de potência fotovoltaica Portugal tem que atingir para cumprir compromissos realistas, quantos desses MW têm que ser produzidos no Alentejo e em que prazos;
(ii) – Redefinir o âmbito do estudo do GTAER: debater, corrigir e dar força ao trabalho já realizado, garantindo que as áreas definidas como menos controversas são efetivamente adequadas e que as forças locais e regionais se identificam com estas conclusões;
(iii) – Definir a proporção entre produção centralizada e descentralizada: cada concelho deveria ter metas específicas para ambas as modalidades, privilegiando sempre que possível a produção descentralizada;
(iv) – Estabelecer um plano de ordenamento para as energias renováveis. Este plano deve articular a produção de energia com a conservação da biodiversidade, a preservação da paisagem e do património, as atividades agrícolas e turísticas, e o respeito pela qualidade de vida das populações;
(v) – Criar mecanismos de compensação efetivos: As regiões que acolhem grandes centrais fotovoltaicas devem receber compensações adequadas, que possam ser aplicadas em projetos de desenvolvimento local.
A transição energética é inevitável e desejável. O Alentejo, pela sua exposição solar privilegiada, tem um papel importante a desempenhar nesta transição. Contudo, não podemos permitir que a urgência da ação climática se traduza em decisões precipitadas, que sacrifiquem valores ambientais, culturais e sociais igualmente importantes.
É urgente parar para pensar. Avaliar criteriosamente o que já está feito, o que está planeado e o que é efetivamente necessário. Ouvir todas as vozes, incluindo as das comunidades locais, dos especialistas em património e biodiversidade, dos agricultores e dos operadores turísticos.
Só assim poderemos construir uma transição energética equilibrada, que respeite a identidade das regiões e contribua para o seu desenvolvimento sustentável. O Alentejo merece este cuidado. E Portugal só tem a ganhar com um processo mais participado, mais transparente e mais equilibrado. É possível fazer com tempo e bem o que não deve ser feito depressa e mal.
Manuel Muacho é membro do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, da Quercus e da Associação Portuguesa de Sociologia