Artigo de José António Falcão: “Francisco, sumo pontífice”

Fruto de ampla reflexão, a revolucionária encíclica contou, na sua elaboração, com o discreto apoio dos mais importantes especialistas, prática habitual da Santa Sé. Menos conhecido é o facto de o Alentejo ter sido chamado a contribuir, através do Festival Terras sem Sombra. José António Falcão (texto)

Entre os títulos de quem ocupa a cadeira de São Pedro há um, enigmático, o de sumo pontífice, que assenta como uma luva ao Papa Francisco. A denominação, herdada da Roma antiga – o pontifex maximus era o sacerdote supremo do Collegium Pontificum, a principal dignidade na religião romana –, designava, segundo a tradição, o construtor de pontes, responsabilidade importante numa urbe cruzada pelo Tibre.

Sendo os rios (e, muito em particular, este) territórios sob a especial tutela dos deuses, só alguém investido de altas funções hieráticas podia interferir no seu curso. Embora se conheçam, hoje, outras explicações tanto para o cargo como para o termo, o sentido metafórico de ligação entre as esferas do numinoso e do humano que lhes foi outorgado acabou por vingar. A Igreja Católica, legatária da Roma Imperial, encarregou-se de prosseguir, depois, o que vinha de trás.

Será necessário aguardar que as águas fluam para um dia, mais tarde, vir à tona a história do pontificado de Francisco. Não restam dúvidas, porém, de que o mais se destacou, na sua acção, foi o desejo de estabelecer pontes que aproximassem margens. Por muito que estas margens parecessem distantes; por muito que a superfície aquática se mostrasse coberta de gelo quebradiço ou se visse alterada por vagas formidáveis; por muito que os furacões castigassem a barca de Pedro, quebrando-lhe os mastros, ou irrompessem monstros das profundidades, dispostos a tragá-la, nunca o papa deixou de guiar essa nave periclitante ao encontro do “outro lado”.

Mais do que descobrir novas realidades ou prender multidões de seguidores, ele quis chamar a atenção para a beleza intrínseca – e a necessidade fundamental – desse encontro fraterno entre as gentes, presença tangível do Deus que escolheu fazer-Se homem (e, também, entre elas e a restante criação).

Francisco não possuiu a robustez eslava e o carisma mediático de João Paulo II, nem a disciplina germânica e o fulgor intelectual de Bento XVI, mas o temperamento argentino e a experiência jesuítica ajudaram a forjar uma personalidade que deixa marcas profundas no mundo actual.

O humanismo militante, a natureza inviolável da vida, o firme desejo de incluir todos, a primazia do diálogo, a confiança no poder libertador da justiça e da misericórdia representam uma orientação segura para avançar no meio da névoa em que vivemos. Ecoam aqui os ensinamentos de grandes mestres da Companhia de Jesus, como Santo Inácio de Loiola ou Pierre Teilhard de Chardin, mas também a capacidade de os pôr em prática ao serviço do bem comum, à imagem do que fizeram São Francisco Xavier ou Pedro Arrupe.

Há quem acuse o papa de ter falado muito e feito pouco. No entanto, até o mais empedernido dos seus adversários – somou muitos, vários deles poderosíssimos, que fizeram tudo para lhe entorpecer a acção – reconhecerá, se for intelectualmente honesto, o significado de alguns gestos que ousou levar a cabo. A imagem da naturalidade com que Jorge Bergoglio trocou os aposentos do Palácio Apostólico por um apartamento numa residência de clérigos é muito esclarecedora para a consciência católica. Resgata-nos do sobressalto causado pelo desinteresse com que Karol Woytila se ocupou da higiene no Vaticano (e fora dele).

Poupa-nos também ao vermelho incandescente – tão aceso que feria – dos múleos Prada de Joseph Ratzinger. Aquele e tantos outros sinais falam, por si mesmos, com bastante eloquência.

O Concílio Vaticano II abriu as portas da Igreja Católica à contemporaneidade e criou grandes expectativas. Todavia, o tempo eclesial (nomeadamente, o da Cúria Romana), caracteriza-se pela lentidão e pela prudência – que não exprimem ineficácia, nem falta de coragem. A etapa de Francisco, num planeta dilacerado por notáveis crises, tornou palpáveis, finalmente, várias aspirações conciliares.

Uma, fortíssima, o deslocar do centro ontológico do “eu” para o “outro”, com a consciência de que a pessoa individual só se realiza verdadeiramente na comunidade – o que, sendo coisa bastante distinta do sentido colectivo da História, põe a ênfase na interacção social e reivindica o primado do bem comum. A encíclica Fratelli Tutti (2020) diz muito sobre isto, tal como a presença do papa em Lampedusa, a opção pelos marginalizados, a valorização das periferias, a ascensão de mulheres na estrutura da Igreja, o respeito para com a diferença ou o acolhimento de todos.

No entanto, a iniciativa mais arrojada do pontificado de Francisco foi a publicação, em 2015, de outra encíclica, Laudato Si, apelo veemente à humanidade para cuidar a respeito da nossa “casa comum”, o planeta Terra. Nunca um papa se ocupara, em termos sistemáticos, do magno tema da sustentabilidade ambiental, mas ele constitui, sem dúvida, o grande desafio para o futuro, do qual depende, em última análise, tudo o resto.

O documento tornou-se já um texto clássico na forma objectiva como trata a complexidade do tema, desde a ruptura face ao consumismo desenfreado e ao desenvolvimento irresponsável até ao incentivo à mudança e à unificação global de esforços para combater a degradação ambiental e as alterações climáticas, ao mesmo tempo que representa uma espécie de “manual de ação”.

Fruto de ampla reflexão, a revolucionária en- cíclica contou, na sua elaboração, com o discreto apoio dos mais importantes especialistas, prática habitual da Santa Sé. Menos conhecido é o facto de o Alentejo ter sido chamado a contribuir, através do Festival Terras sem Sombra. Este projecto, surgido em 2003, assumiu como um dos seus pilares a salvaguarda da biodiversidade. A ideia singrou, acabando por chegar aos ouvidos de Roma. Certo dia de 2014, o secretariado do festival recebeu o contacto de um cientista neerlandês que, muito amavelmente, informou ter sido mandatado para obter, com a devida reserva, a opinião da equipa do Terras sem Sombra acerca de alguns pontos do documento que estava a ser preparado.

O guião vindo de Utrecht era já notável. Com o auxílio de cientistas da nossa região, pôde-se chamar a atenção para o imperativo da conservação de certas espécies, quase invisíveis aos olhos da opinião pública, que estão no limiar da extinção, como o saramugo, mas são decisivos para o funcionamento dos ecossistemas e fazem parte da cultura das comunidades locais. Os pequenos contributos oriundos do Alentejo foram acolhidos de maneira interessada e, surpreendentemente, ficaram reflectidos, com a devida generalização, no texto final, a par de outras achegas oriundas dos quatro cantos do globo.

Conta-se que o papa Inocêncio III teve, em sonhos, uma visão muito perturbadora, segundo a qual São Francisco de Assis suportava, com os ombros, a mole imensa da basílica de São João de Latrão, prestes a tombar por terra – um símbolo da Igreja periclitante. Este outro Francisco, que o exemplo daquele inspirou ao ponto de escolher o mesmo nome, parece ter levado, sobre si, todo o peso de todo um mundo com dificuldades para encontrar-se consigo mesmo, mas ansioso por fazê-lo. A sua extraordinária acção como pontífice irá perdurar.

José António Falcão é historiador de arte, museólogo e gestor cultural. Especialista em arte e arquitetura religiosas, tem dedicado grande parte da sua carreira ao estudo e salvaguarda do património cultural do Alentejo.

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