“Quando andamos aqui pelo Campus” – é João Grosso quem o conta – “dirijo-me muitas vezes aos alunos dizendo-lhes para darem bom uso a esta espingarda”. A manhã já vai longa, a temperatura aquece e, por isso, apesar de a propriedade ser bastante rica em caça, coelhos e lebres mal se deixam avistar.
Sucede que a “espingarda”, referida pelo coordenador do curso profissional que forma técnicos de gestão cinegética, não é propriamente uma arma de fogo, muito longe disso, antes uma esponja azul utilizada para lavar dezenas de bebedouros e comedouros espalhados pelo Campus, instalado na Zona de Caça Municipal.
Limpar e abastecer estes pequenos depósitos de água e de alimentos é uma rotina diária, através da qual os alunos aprendem a pôr em prática noções de conservação da natureza e de intera- ção com as espécies de caça menor e migradoras, aprendidas em sala de aula.
Este é um curso profissional único no país, aposta iniciada em 2011 pela Escola Profissional da cooperativa ALSUD, com sede em Mértola. “O primeiro ciclo formativo na área cinegética começou nessa altura, decorrente do contexto geográ- fico onde nos encontramos e de Mértola se estar, já nessa altura, a afirmar como Capital Nacional da Caça”, conta Isabel Campos, diretora da Escola. “Bom, a verdade é que temos sempre captado jovens de outros locais do país e, portanto, além de darmos resposta às necessidades locais de formação nesta área, ainda contribuimos para inverter o êxodo rural. É uma área que atrai jovens, em busca de uma formação com muita qualidade”.
Alguns destes jovens, sublinhe-se, não só chegaram à vila para estudar, como decidiram ficar, ou não se trate de uma área de trabalho a carecer de gente qualificada. Isabel Campos destaca ainda o facto desta formação fazer “uma ponte entre a cinegética e a conservação da natureza, com preocupações em relação à biodiversidade”, ou não estivesse Mértola integrada no Parque Natural do Guadiana. Daí que, uma vez concluído o curso, os alunos estejam preparados para conceber e implementar planos de ordenamento e exploração cinegética, mas também para promover a gestão sustentada e assegurar a conservação do património cinegético e dos ecossistemas naturais que o suportam, tendo em conta o solo e o clima, por exemplo.
Esta visão, completa João Grosso, vai ao encontro da “transformação” que ocorreu na forma de encarar a caça: “Deixou de ser uma atividade meramente coletora, ou predadora, digamos assim, para uma atividade que aporta recursos à natureza”. Por isso, prossegue, “ensinamos aos nossos alunos que a cinegética é uma atividade necessária para a conservação da natureza, para melhorar os recursos e fomentar, não apenas a caça, mas todas as espécies de fauna e flora que estão muito depauperadas com as alterações climáticas e com as grandes transformações agrícolas”.

Lembram-se da tal “espingarda” utilizada para limpar os bebedouros que matam a sede não só a espécies cinegéticas, mas a muitas outras, num território onde a água é um bem cada vez mais escasso? “Damos formação para melhorar todo este habitat”, diz o coordenador do curso de Técnico de Gestão Cinegética, da Escola Profissional ALSUD. “Primeiro, identificamos as dificuldades da fauna e flora, depois aportamos recursos para o campo, de modo que a fauna tenha melhor qua- lidade de vida, menos dificuldades e possa repro- duzir-se melhor”. Já agora, note-se, o coelho-bravo está na base da cadeia alimentar de dezenas de espécies, do lince-ibérico à raposa, passando por aves de rapina, algumas ameaçadas.
“Fomentamos o êxito reprodutivo da maior parte das espécies e, no caso das cinegéticas, colhemos uma parte. Como é que isso se faz, na prática? Através da realização frequente de censos, vemos o que temos, e, no final, só colhemos uma pequena parte de modo que as espécies nunca se extingam e que haja uma diversidade cada vez maior”, comenta João Grosso, que além de formador tem também uma longa experiência como gestor de caça, com várias formações, incluindo no Reino Unido e em Espanha.
FORMAÇÃO COM APOIOS
A propósito de novos alunos que chegam à ALSUD, a diretora da escola, Isabel Campos, lembra a existência de diversos apoios como, por exemplo, no alojamento aos alunos deslocados (cerca de 250 euros mensais), subsídio de alimentação, passe gratuito para transportes públicos e bolsas de formação e para aquisição de material de estudo. Não paga tudo, mas é uma ajuda.
Teresa Santos, a diretora pedagógica da es- cola, revela que quem escolhe este curso “traz um gosto especial pelo campo e pela natureza” e esse será, de resto, um dos requisitos para que a forma- ção seja bem sucedida. “Sendo um curso tão específico, este impulso inicial é muito importante”. São alunos com o 9.º ano completo, alguns, como se viu, vindos de longe.
“Para além dos alunos serem in- teressados nestas temáticas, é também importante que as famílias compreendam a diferença que eles podem fazer em zonas do interior. E há um conjunto de problemas que a sociedade vive atualmente, das alterações climáticas às suas manifestações, como os incêndios, e o abandono do mundo rural, que este curso ajuda a inverter”, prossegue.
De acordo com Teresa Santos, a escola apos- ta “numa sólida formação, tanto teórica como prática”, e na criação de um “ecossistema humano em torno da atividade cinegética, uma rede social que extravasa a própria escola, pois o meio é muito favorável a isso”, e que inclui, além do Campus, uma Escola de Caça, Pesca e Natureza, lançada em 2019, ou a participação dos formandos na organização das atividades de exterior da Feira da Caça, um dos mais importantes certames a nível nacional.
“Ao longo dos anos já formamos mais de uma centena de alunos nesta área, com percur- sos e perfis diferentes, como diferentes foram as saídas profissionais”, acrescenta ainda a diretora pedagógica, lembrando que o ensino universitário é uma possibilidade, uma vez concluído o curso, sendo que o ingresso no mercado de trabalho é também hipótese a considerar. Entre as principais saídas profissionais inclui-se a de gestor cinegético, “responsável pela melhoria dos habitats e gestão do ecossistema”, vigilante da natureza, técnico agrícola e florestal ou agente do Serviço de Proteção da Natureza e Ambiente (SEPNA) da GNR.
Quanto ao trabalho no Campus, bom, esse é também uma espécie de “montra” do processo formativo. O início foi em setembro de 2021, numa área da Zona de Caça Municipal. “Vai-se construindo com os alunos, melhorando o habitat, e os resultados são avaliados pela evolução das populações de animais que lá estão. Da avifauna em geral, e da perdiz e do coelho, em particular. Acaba de ser um laboratório vivo”. Um palco para problematizar os desafios que o mundo rural enfrenta, “nada comparáveis aos de há 30 ou 40 anos”, e que envolvem questões como as alterações climáticas, sanidade animal ou o funcionamento dos ecossistemas.
“Queremos que os nossos alunos percebam tudo isso, e que saibam usar as melhores ferramentas para melhor gerir aquele habitat e obter resultados palpáveis, sendo também um serviço que prestamos à comunidade”, conclui.
ENSINO PROFISSIONAL
Localizada em Mértola, a ALSUD é uma instituição de ensino profissional que oferece cursos especializados alinhados com o desenvolvimento sustentável e as necessidades da região. Entre a oferta formativa inclui-se o Curso Profissional de Técnico de Geriatria formando profissionais para prestar cuidados de saúde e apoio direto a idosos ou pessoas dependentes, em domicílios, instituições ou unidades de tratamento.