António Barreto: “A Reforma Agrária era um mito da vida política portuguesa”

A Reforma Agrária, de que se assinalam 50 anos, foi, segundo António Barreto, “um mito da vida política portuguesa”, alimentado durante décadas pela oposição e pelas esquerdas democráticas. O antigo ministro da Agricultura recorda o processo de ocupações, expropriações e criação das Unidades Coletivas de Produção como um momento de enorme convulsão social e económica, cujas consequências se prolongaram por gerações. Pedro Emídio (texto) e António Cotrim (fotografia) | Lusa

A Reforma Agrária era um “velho mito da vida política portuguesa”, que ganhou forma em 1975, quando se registava tensão num Alentejo escasso em mão-de-obra. Quem o diz é Álvaro Barreto, sociólogo e antigo ministro da Agricultura no primeiro Governo constitucional, liderado por Mário Soares [1976/78]. “A Reforma Agrária era um velho mito da vida política portuguesa e da oposição e das esquerdas democráticas portuguesas”.

Desde 25 de abril de 1974 e até ao final do mesmo ano, foi-se criando uma situação de “alguma pressão social” no Alentejo para a concretização da Reforma Agrária, impulsionada pelos partidos políticos, desde o PCP ao PS, mas também pelos sindicatos e pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), que atuou, de forma mais ativa, até à promulgação da Constituição, em 1976.

No Alentejo, o emprego e a produção estavam em queda. O sector agrícola, em Portugal, vivia com dificuldades. A pressão que se fazia sentir resultou na ocupação da Herdade do Monte do Outeiro, na freguesia de Santa Vitória, em Beja, ainda em dezembro de 1974. Seguiram-se “meia dúzia de ocupações” no início do ano seguinte e antes da entrada em vigor da Lei da Reforma Agrária.

Esta lei definiu “uma fasquia acima da qual as terras eram expropriadas, definiu as indemnizações e a reserva [os proprietários expropriados tinham direito de reserva de uma determinada área da propriedade]. Nenhuma destas cláusulas foi respeitada […]. Foi tudo expropriado: o gado, a maquinaria, o cereal, a cortiça, os armazéns e até mesmo a casa de habitação”, diz o sociólogo.

António Barreto lembra que, à data, era passada a mensagem de que a terra ocupada estava ao abandono e que, fazendo jus ao slogan então muito usado, seria entregue “a quem a trabalha”. Contudo, trabalhadores agrícolas, mobilizados pelos sindicatos e pelo PCP, ocuparam, sobretudo, “as boas terras, com lavoura moderna e tudo o que eram benfeitorias – regadios, vinhas, olivais e montados de sobreiro”.

A operação de ocupação “foi muito bem preparada”, com a criação pelo Governo de Centros da Reforma Agrária, encarregues de levar a cabo este processo, acrescenta, sublinhando que a GNR estava desarmada e não intervinha, ao contrário do que acontecia, muitas vezes, com os militares. Do lado dos proprietários houve uma “resistência moderada” e muitos retiraram-se para as cidades, juntamente com as suas famílias, com receio do processo em curso.

Contudo, algumas herdades, nomeadamente as que um ano antes tinham investido na melhoria das suas condições e das que ofereciam aos trabalhadores, conseguiram resistir às tentativas de ocupação, como foi o caso das quintas da Alorna e da Lagoalva, no Ribatejo.

A maioria dos trabalhadores agrícolas que procedeu às ocupações foi movida pelo desejo de manter o seu emprego, embora alguns tivessem a pretensão de tornar-se proprietários. “Isso era uma minoria”, garante António Barreto. “O Alentejo estava proletarizado há muitos anos. A maioria [dos trabalhadores] era assalariada rural, que não tinha gosto ou competência técnica e económica para se transformar, de um dia para o outro, em proprietários […]. Queriam salário e emprego garantido durante o ano inteiro, o que no Alentejo era novidade”. E mesmo estes, à primeira oportunidade, mudavam para a indústria, para as fábricas, tendo em conta que o trabalho agrícola é “muitíssimo penoso e mal pago”.

As terras expropriadas, inseridas nas chamadas Zonas de Intervenção da Reforma Agrária (ZIRA), constituíram Unidades Coletivas de Produção (UCP), que juntavam várias herdades. A propriedade era do Estado. Estas unidades de produção recorriam ao crédito agrícola de emergência para garantir o salário semanal dos que nelas trabalhavam.

“Fossem 10 ou 200 trabalhadores era indiferente. A agência bancária tinha instruções do Banco Central para proceder ao pagamento contra [a apresentação] de apenas um documento que atestava quem eram os trabalhadores”, diz António Barreto, recordando, que a banca tinha acabado de ser nacionalizada.

A ZIRA abrangeu os distritos de Setúbal, Beja, Évora, Portalegre, bem como partes dos distritos de Faro, Lisboa, Santarém e Castelo Branco. Até janeiro de 1976 foram ocupados perto de 1.183.000 hectares de terras. De acordo com o livro “Anatomia de uma Revolução”, de António Barreto, entre agosto e dezembro de 1975, foram legalmente expropriadas 865 herdades e 311 proprietários. De janeiro a julho de 1976, foram expropriadas 1.261 herdades e 398 proprietários.

Só em 1977, uma lei preparada pelo próprio António Barreto veio regular o processo da Reforma Agrária, estruturando as condições para a restituição de propriedades aos antigos proprietários ou herdeiros e abrindo caminho para as indemnizações. Muitos proprietários recuperaram as suas terras 20 ou 30 anos depois. O Tribunal Europeu reconheceu razão à maior parte dos proprietários que pediu indemnizações, levando o Estado a assumir os valores em causa.

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