Poeta e antropólogo com dois mestrados, a escrita de Luís Filipe Maçarico é umas vezes poema, outras dissertação de conhecimentos ancestrais. Tem-se dedicado à investigação do cante alentejano, das aldrabas e batentes de portas e do associativismo, entre outros temas. Às viagens vai buscar inspiração para o verso, que também retrata gentes.
Nasceu em Évora, mas foi viver para Lisboa ainda não tinha um ano. Numa infância de muitos vazios, o amor incomensurável da avó paterna que o criou deu-lhe estrutura. Era de uma profunda dedicação face à realidade de serem só os dois, ainda que houvesse um tio-padrinho por perto que até se esforçou, e que o menino admirava. “A minha avó foi a minha grande janela para o mundo”, comenta o poeta e antropólogo com um “curriculum vitae” que é também prova da sua força e perseverança. Acredita que a avó lhe terá despertado um pouco a criatividade e o imaginário com as histórias que lhe contava de “bruxas e lobisomens nas encruzilhadas”.
Por vontade do tio que garantia os custos, iniciou o ensino básico numa escola “de miúdos de famílias ricas”, na Lapa. “Eu estava a destoar”, observa, justificando a passagem, por sua vontade, para o ensino público “que era mais associativo, pois o Centro Escolar Republicano de Alcântara era uma coletividade”.
Foi um aluno “bem-comportado, certinho, e correspondia ao que” lhe “era pedido”, por isso não foi sujeito às humilhações e castigos praticados nas salas de aula. Mas a memória de colegas expostos “à varanda com orelhas de burro” e de uma professora “autoritária, que era espelho do regime”, está muito presente.
Tinha 11 anos, e frequentava a Escola Preparatória Francisco de Arruda, quando escreveu o primeiro poema: “Foi dedicado à minha avó, e ela chorou”, recorda. Os professores de Português e de Literatura Portuguesa e mais tarde também os da Escola Comercial Ferreira Borges “puxavam” por ele, estimulando-lhe a leitura e a escrita, e elogiando-lhe os ensaios. “Os livros e a poesia salvaram-me, são os pilares da minha existência”, diz.
OS POEMAS NASCEM DE VIVÊNCIAS
Todo o dinheiro que a avó e o tio lhe davam era gasto na compra de livros em segunda mão, num quiosque que havia no Parque Mayer. Entre muitos outros, leu por essa altura “A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia”, de Selma Lagerlof – considerado um dos primeiros romances ecológicos do mundo, e de grande qualidade poética –, enquanto “ia conhecendo” os poetas portugueses cujos textos eram ensinados nas aulas. Tem admiração por Eugénio de Andrade, de quem foi amigo. “Fico muito feliz por ter conhecido esta pessoa, e de ele ter sido um verdadeiro mestre a aconselhar-me”.
Luís Filipe Maçarico diz que os seus poemas “nascem das vivências”. Isto é, “têm de estar relacionados com um sentimento e uma vivência de um lugar ou com pessoas reais. São muito pouco trabalhados, e brotam com a mesma urgência com que a água sai da fonte”. Às vezes demoram-se um pouco mais, como aconteceu este verão em que andou “uma semana a pensar numa senhora muito velhinha” da zona da Serra da Estrela, com uma história de vida extraordinária, até construir um poema sobre ela. As viagens são uma das grandes inspirações, ou como diz “uma das minhas peles, fazem parte da minha respiração”. Preenchem-lhe livros de poesia como “Os Pastores do Sol”, “Os Versos do Caminhante”, lançado o ano passado, e “Língua de Rumores”, em maio deste ano.
A vida profissional do poeta começa depois de voltar de Nampula, Moçambique, onde cumpriu o serviço militar “longe da frente de batalha, protegido de ataques e de bombardeamentos”. A avó, que era muito protetora, sempre protelou uma eventual experiência laboral do neto, com o argumento de que era muito novo. Foi trabalhar para uma loja de eletrodomésticos, mas a seguir ao 25 de Abril de 1974 ficou desempregado. Foi servente de pedreiro e servente de carpinteiro, onde o seu trabalho foi elogiado. Por fim, ingressou na Câmara Municipal de Lisboa, de onde saiu reformado. Entrou para técnico auxiliar sanitário, saiu como técnico superior antropólogo: “São 18 anos na área da limpeza, e mais 18 no Departamento de Desporto, lidando com coletividades e clubes de bairro.”
“MANEIRAS DE VER E DE OUVIR”
A trabalhar, Luís Filipe Maçarico completou o ensino secundário com médias de 16 e 17 valores, aos 30 anos. “Esforcei-me imenso e tive a aquiescência dos professores no meu esforço. Fui um aluno crescido bastante bem-sucedido.” Na hora de escolher um curso universitário para frequentar, amigos sugeriram Filosofias e História, mas ele apercebeu-se de outro saber “muito interessante para estudar rituais, o património e as tradições, chamado Antropologia, e que é transversal noutras cadeiras”.
Diz que há semelhanças entre o poeta e o antropólogo: “Maneiras de ver e de ouvir. Ou seja, uma grande atenção ao mundo que os rodeia. Na poesia, nós recolhemos sons, odores, sentimentos, rostos, paisagens. A Antropologia de algum modo complementa essa recolha. Há um lado poético na Antropologia, e eu nunca separei o poeta do antropólogo.”
Com dois mestrados, um em Antropologia, “Património e Identidades”, e outro sobre o “Portugal Islâmico e o Mediterrâneo”, tem várias publicações científicas e comunicações na área das ciências sociais. Têm-se dedicado à investigação do cante alentejano, das aldrabas e batentes de portas, do associativismo, estudou também o imaginário popular e a memória oral.
Há 18 anos fundou a revista “Aldraba”, para onde escreve com regularidade. A poesia continua a ser o seu “motor”, tendo lançado três livros nos últimos três anos. No âmbito do PAN – Festival e Encontro Transfronteiriço de Poesia, Património e Arte de Vanguarda em Meio Rural, onde participa desde 2013 [Vilarelhos, Alfândega da Fé], foram inauguradas 10 ruas com 10 poemas e teve a alegria de ver um dos seus se escolhido.
Tendo o seu segundo mestrado sido lecionado pela Universidade do Algarve no Campo Arqueológico de Mértola, diz que foi “criando raízes” com o Alentejo através da vila-museu Mértola, refere “é talvez o alimento, o oxigénio fundamental” da sua ligação ao território onde nasceu. Fez um levantamento etnográfico sobre rezas e benzeduras na freguesia de Santana de Cambas e escreveu um livro sobre “Memórias do Contrabando em Santana de Cambas”.
A mudança de paisagem originada especialmente pela agricultura intensiva do olival e da vinha deixa o poeta muito “apreensivo” pois, segundo afirma, “o Alentejo corre o risco de se vir a tornar um deserto”.