Novo livro de Domingos Boeiro, a arte poética da memória

Em “A Casa da Memória”, Domingos Boeiro convida a uma revisitação poética da sua aldeia, da luz do chão onde nasceu. Luís Godinho (texto)

“O meu muro era um piano de cauda feito de pedras mágicas/ vindas do fundo da pedreira de xisto”. Um muro, não dos que “dividem e isolam”, mas dos que “protegem e sustentam”. Um muro que “não se distinguia” das casas principais da aldeia do Rosário, concelho de Alandroal, onde nasceu em 1963, mas que continua bem diferenciado na memória do autor.

“Esta casa”, diz-me Domingos Boeiro, “é a casa das memórias de uma criança que nasceu numa aldeia no Alentejo”, num tempo em que o “dia inicial inteiro e limpo” de que fala Sophia, ainda não tinha despontado. “Quando a madrugada de Abril chegou, a miséria, a pobreza generalizada, a exploração, a ignorância inconsciente de uma longa noite de mais de 48 anos, já tinham roubado a minha infância e a dos meus amigos”, conta o autor. Tinha 11 anos aquando da Revolução, já conhecia as “vozes das pedras” e tinha aprendido “as falas das plantas que ainda hoje convoco e cultivo”.

Edição da Colibri, “A Casa da Memória” reencontra a aldeia da sua infância, “solidária e comunitária, onde nos ajudávamos uns aos outros na arte de sobreviver”, bem como as pessoas que a habitavam. “É uma obra”, escreve o também poeta e jornalista Fernando Fitas nos posfácio, “que radica no imaginário de um lugar e de um tempo que vai buscar às raízes da alma o seu sustento, para suportar as traves do telhado dos dizeres”.

Nascido, como se disse, na aldeia do Rosário, Domingos Boeiro sempre viveu entre o Alentejo e Lisboa, onde se licenciou em história. É mestre em gestão de informação e bibliotecas, vive no Barreiro e dá aulas na Escola Secundária Augusto Cabrita. Apresenta-se como formador, também animador cultural, autor, “poeta talvez” – curioso o “talvez” para quem escreve poesia desde os 15 anos -, ainda como viajante, aprendiz de botânico e contador de estórias.

Vê esta obra como “uma ode ao Alentejo, ao território, ao rio, à natureza”, não deixando de reunir poemas “com um alcance global”, de um chão, que sendo da aldeia, “pode ser refletido, pensado e compreendido em qualquer parte do mundo”.

Numas breves notas que antecedem os poemas, Domingos Boeiro fala do autor de “A Casa da Memória” como se de um outro se tratasse, espécie de heterónimo: “todos os poemas cantam e contam a própria vida do autor de forma clara e transparente reduzindo o poema ao essencial, à côdea evidente da sua relação com a terra, a sua aldeia, o seu universo, de onde parte para regressar e regressa para a partir”. Acrescenta que por vezes “a emoção lavra e rasga a pele do autor”, para depois, na última frase, nos lembrar que são as suas próprias memórias que nesta casa se encontram: “São as minhas raízes que emergem (…) tinha de escrever estes poemas”.

Um livro autobiográfico? Nas mensagens que trocamos, Domingos Boeiro diz que sim, mas não só. “É o livro onde mais me exponho e que tinha de ser escrito agora, quando já vivemos mais de metade da nossa vida. Era uma urgência clarificar um pouco da minha existência, quer para dentro de mim, quer para o exterior”. Vê “A Casa da Memória” como um “exercício de exteriorização e exorcização de sentimentos”. Sê-lo-á, sem esquecer “a cal e a luz, as árvores e os animais”, os amigos de infância com quem aprendeu “a arte da resistência”.

Nem por acaso, não mesmo por acaso, eis “A fiel azinheira” em dois versos que documentam uma certa forma (nobre) de vida: “Não há arame, nem vedação/ Que quebre a dignidade do teu porte”. Bem sei que o autor deixa impressos neste livro os nomes de Manuel da Fonseca, Manuel Alegre e Eugénio de Andrade, mas é de facto Miguel Torga quem evoca, esse Torga que no Alentejo encontrou “um mundo livre, sem muros, que deixou passar todas as invasões e permaneceu inviolado, alheio às mutações da história e fiel ao esforço que o granjeia”.

E depois, bom depois há a presença constante da figura da avó, desde logo no verso que dá nome ao livro: “Enquanto me lembrar do cheiro da avó/ impresso no seu avental,/ e das ervas e sabores da panela,/ e da capoeira do quintal,/ e das flores e roseiras dos canteiros,/ e da vozes do passado;/ A minha casa será cantada”. Com ela virão inevitavelmente “os amores e as dores”, bem como “as formas de lidar com a perda”. Diz Domingos Boeiro que estes são “poemas expressivos e incisivos que às vezes rasgam a pele”. E tem razão. 

Partilhar artigo:

ASSINE AQUI A SUA REVISTA

Opinião

PUBLICIDADE

© 2024 Alentejo Ilustrado. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por WebTech.

Assinar revista

Apoie o jornalismo independente. Assine a Alentejo Ilustrado durante um ano, por 30,00 euros (IVA e portes incluídos)

Pesquisar artigo

Procurar