De Estremoz, onde nasceu e passou boa parte da infância, diz ter “boas recordações”. A família materna tem raízes em Estremoz e Elvas. A paterna é de Moura, no Baixo Alentejo. E, então, aconteceu o que tantas vezes se repetiu: “O meu pai era militar, foi para o quartel em Estremoz, o pai dele era amigo do pai da minha mãe, recomendou-o e olhe… apaixonou-se pela minha mãe”. Chapeleira e administrativa, também ela se perdeu de amores.
“Tenho recordações de passar muito tempo com os meus avós e bisavós, de ter entrado para a primeira classe na Escola da Mata, da minha professora da primeira classe, a Natália, de quem fui amigo até ela praticamente falecer. Tenho recordações de ir ver o hóquei em patins com o meu avô, de ir ao mercado com o meu avô… são memórias muito profundas da minha infância”, conta José Manuel Candeias.
Foi na cidade que viveu os primeiros dois anos, a ela regressando depois de uma passagem por Moçambique. “Vinha cá de férias, com a minha mãe, depois voltei para fazer a escola primária”. Por essa altura, garante, ainda a paixão por África não lhe corria no sangue. “Já tinha vivido uns anitos em África, mas não tinha essa noção. Acabei por me tornar nómada, por andar atrás do meu pai, como disse, que era militar e fazia comissões de serviço em África. Depois, quando me tornei autónomo, segui esse caminho de nómada”.
Andou de terra em terra, também como estudante. “Terei feito o liceu entre Nampula, Elvas, Évora… não consigo dizer exatamente em que alturas da minha vida. Depois entrei para a Universidade de Évora, fiz o curso de Sociologia, fui trabalhador estudante, fiz o curso a estudar à noite e a trabalhar durante o dia”. Por essa altura, lembra, foi trabalhar para a Câmara de Avis, chegando a ser sindicalista “a tempo inteiro” no Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local (STAL).
Acabando por se fixar em Évora, dá-se o caso de por essa altura, finais da década de 80, princípios da de 90, começarem a surgir os projetos cofinanciados por fundos europeus. “Comecei a trabalhar nisso, fui ganhando tarimba, o que me levou a elaborar projetos de maior dimensão, à escala internacional, e aí passei a trabalhar praticamente como ‘freelancer’ na área dos recursos humanos e do desenvolvimento local”. Évora era então a sua base, de onde partia para “missões de curta duração” em países como Espanha, Irlanda, Grécia, Cabo Verde ou Moçambique, ou para outras, mais longas, em Angola.
“Isto também correspondeu a períodos diferentes da minha vida, enquanto os meus filhos foram pequenos eu fiz missões de curta duração, quando eles se autonomizaram passei a fazer missões de longa duração”. De novo África.
Autor do romance “Nas Margens do Atlândico”, recentemente publicado, José Manuel Candeias define-se como “um afro-alentejano nascido em Estremoz, mas com muitos anos de vida e de trabalho em África”. E explica: “Essa definição quer dizer que a minha identidade se reparte no reconhecimento dessas duas realidades da minha vida. O amor pelo Alentejo e o amor por África. Ainda não disse, mas tenho 23 anos de África e o resto do tempo, estou com 67 anos, foi passado no Alentejo, com curtas incursões por outros países. E então é natural que esta ambivalência se reflita na minha maneira de ser, na minha maneira de olhar para estes dois territórios encontrando entre eles muitas semelhanças”.
Falemos disso: “Faço esse paralelismo entre África e o Alentejo. Do ponto de vista geográfico, o espaço amplo do Alentejo com o espaço amplo de África, a cor do céu, o sol, o calor, são coisas muito semelhantes entre os dois territórios. Do ponto de vista histórico, também não se pode es- quecer que a luta pela liberdade travou-se aqui no Alentejo quando decorria em África a luta pela independência em que o inimigo era comum”.
Diz José Manuel Candeias que o 25 de Abril de 74 o apanhou em Moçambique. “Vários povos das antigas colónias e os alentejanos e os portugueses batiam-se contra o regime fascista colonialista, portanto o inimigo era comum e eu na altura já conseguia perceber isso e identificar as lutas travadas no Alentejo com as lutas travadas em Moçambique”.
São recordações, vivências e referência pessoais de uma vida entre o Alentejo e África que José Manuel Candeias traz para o seu romance de estreia, fazendo-se “simultaneamente, ator no sentido pessoano do fingidor, e narrador do que lembrou, inventou e juntou. Por isso, a simbiose entre a memória e a imaginação que lhe pertencem, surge na primeira pessoa do singular”.
“Tenho uma relação com a escrita já muito antiga, mas uma relação muito irregular e dispersa. É em jornais, é em blogues… e até a minha própria vida profissional se baseia muito em escrever, fazer estudos, vender estudos, vender ideias, portanto a escrita fez sempre parte da minha vida profissional”, conta o sociólogo, acrescentando que a determinada altura se começou a questionar sobre a sua capacidade, e disponibilidade, para escrever um livro.
Já havia publicado um outro, de caráter técnico, sobre o desenvolvimento local, mas um romance seria outra coisa. “Abalancei-me a escrevê-lo e aí está. Foi escrito há sete ou oito anos e esteve muito tempo guardado na gaveta”. Trata-se, assume, de uma obra que “retrata uma série de episódios da minha vida em Moçambique e que tem por cima um cimento que é uma ficção que criei para ligar todos esses episódios”.
Confessando que a tal “vida nómada” associada aos interesses profissionais acaba por tornar “difícil” elaborar planos e projetos com muita antecedência, José Manuel Candeias diz já ter preparado um outro “livrinho de histórias”, pronto para poder ser publicado. “É um conjunto de histórias, apenas histórias, que têm a ver também com a minha vivência em África e com particularidades da vida em África. Muitos portugueses viveram em África mas não a perceberam, porque não se integrar na vida dos africanos”.
“A separação racial”, prossegue, “a mania da superioridade moral dos europeus em relação aos africanos, o menosprezo pela cultura africana e a falta de vontade de a compreender levou a muitos equívocos e leva ainda hoje a que se estabeleçam comparações que não fazem sentido”.
Ora, com as histórias que tem prontas para contar, promete contribuir para um “novo olhar” sobre essa realidade. Um olhar afro-alentejano, pois claro.