Fernando Mão de Ferro, o editor que na Colibri dá voz ao Alentejo

Rapaz criado na Ribeira de Nisa, Fernando Mão de Ferro é o homem por detrás das Edições Colibri, que fundou há mais de 30 anos. Com centenas de publicações sobre o Alentejo e de escritores alentejanos, tem assumido um papel único na fixação da memória regional. Contra ventos e marés. Júlia Serrão (texto)

Nasceu na cidade de Portalegre, mas foi em Ribeira de Nisa que cresceu livre, em contacto com a natureza. Uma povoação na aba da Serra de São Mamede de casas dispersas na paisagem, com pequenas hortinhas de onde as pessoas tiravam os alimentos para a sua sobrevivência. Que também era terra de canastreiros, o ofício que ocupava muitos habitantes e agora é contado num pequeno centro interpretativo.

Fernando Mão de Ferro guarda memórias de “uma vida bastante dura”, que na altura não percebia que o era, e só hoje materializa “comparando com a vida que as crianças têm”. Apesar disso, teve uma infância “bonita” em contacto com o meio ambiente – “lembro-me perfeitamente de gostar muito de ir aos ninhos, de conhecer as diversas espécies de pássaros”. Ainda conserva uma “paixão enorme pela natureza e por tudo aquilo que ela contém”. Mas, de certo forma, foi uma infância “bastante isolada”, pois até aos cinco anos não teve outras crianças para brincar.

“Há pouco tempo comecei a perceber que passei uma infância sem ter referências de amizade com outros miúdos, porque eles não existiam. Acabava por me entreter com brincadeiras que inventava dentro da própria natureza, que me era familiar”, frisa. Na altura guardava algumas cabras que o pai tinha, ajudando na economia familiar.

O ingresso no ensino primário aos seis anos abriu-lhe um novo mundo: já convivia com outros meninos, e a par das letras e das contas aprendeu a arte de se relacionar com os pares. É o tempo que também marca o encontro com os livros, pois até aí “nem sequer sabia o que isso era”. O primeiro que entrou na casa do agora editor – que foi sacristão cerca de dois anos e até aprendeu umas palavras em latim – era sobre grilos, e tinha-lhe sido oferecido pelo pároco.

“Os primeiros contactos que tive com os livros foi através da Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian”, nota. Também o irmão, mais velho seis anos, descobriu a importância da leitura. Iniciava-se o ciclo das requisições e devoluções quinzenais no Monte Carvalho, que era onde a biblioteca itinerante parava. “Comecei a gostar de livros”. Em boa verdade, terá sido aí que se começou a forjar a sua vocação de editor.

A partida de rapazes um pouco mais velhos para a Marinha, que voltavam contando as viagens que faziam a destinos distantes, fê-lo sonhar. Havia um mundo para além daquele bocado de terra, e ele queria conhecê-lo. Saiu do Alentejo e alistou-se na Marinha como voluntário, aos 17 anos. Correu mal. “Infelizmente, na Marinha acabei por não viajar nada, porque mal tirei o curso de radiotelegrafista fui para Angola e fiquei lá três anos”. Eram os anos de chumbo da Guerra Colonial.

Quando Abril aconteceu, Fernando Mão de Ferro não quis perder nada da democracia que começava praticamente sem sangue, e apenas cravos. “Participei ativamente em tudo aquilo que existiu no 25 de Abril e apanhou os jovens com vontade de participar nas coisas. Foi uma grande bebedeira, como se diz, de emoções, partilhas, e de fraternidade com as causas. Se vínhamos de zonas muito pobres e conhecíamos a miséria e a pobreza que existia na região, era natural que quiséssemos dar o nosso contributo para melhorar alguma coisa”.

Depois começou a sentir que precisava de saber mais, e pensou que o curso de filosofia poderia dar-lhe esse conhecimento. Na Faculdade de Letras da Universidades de Lisboa fez parte da direção da Associação de Estudantes, e houve um momento, conta, em que se colocou a hipótese de lá ficar com o aparelho técnico, já depois de ter tirado o curso, para poder colaborar com a associação “na feitura de manuais escolares e apostilhas”. Ficou, e a determinada altura percebeu que “no meio das fotocópias, também se podiam fazer livros, e dar a conhecer muitos trabalhos que se faziam ali” e que ele achava serem interessantes.

Daí nasceu a ideia de criar uma editora a que deu o nome de Colibri, não fosse o editor um apaixonado por pássaros. “Colibri é um passarinho lindo, expressão das coisas mais lindas que existem na natureza”, observa. Inicialmente estava muito virada para a publicação de cariz académico, mas depois ultrapassou esse registo. “Passei a publicar muita coisa. A diversidade é imensa atualmente: muitas demografias históricas das terras, das aldeias, a poesia, muitos romances…” Tem mais de quatro mil livros editados, sendo que várias centenas têm uma relação com o Alentejo: são sobre o território ou de autores alentejanos.

Por estes dias, a Colibri celebra o 25 de Abril de 1974 com o lançamento de um livro sobre o Tarrafal, outro sobre os Capitães de Abril, e um último sobre Spínola e a descolonização da Guiné. Também está a publicar as memórias de uma aldeia do Alentejo nos anos 40, 50. Ainda está “quente” uma obra, “Venho de Lá – Estórias e Memórias de Marvão”, de Natália Batista, uma alentejana de Santo António das Areias.

Segundo o editor, hoje acontece muitas pessoas com 70, 80 anos quererem publicar as memórias do seu tempo “que estão praticamente a desaparecer”. O retrato de aldeias da região, manifestações culturais e religiosas, diversas festividades e tradições são temas recorrentes de livros, cujo percurso começa muitas vezes com o contacto do autor. Mas a Colibri também toma a iniciativa.

O editor diz que para se publicarem obras, “porque envolve aspetos financeiros que não são suficientes”, é necessário encontrar instituições “vocacionadas para ajudar no registo das coisas”. Para esclarecer que da parte da extinta Direção Regional da Cultura do Alentejo “houve sempre abertura e uma sensibilidade extraordinária” para tudo o que propunha. “Há medidas políticas que se tomam com uma frieza!… diria mesmo ignorância total sobre aquilo que é a vida real”, diz sobre o fim do organismo.

O editor está muito ligado ao Alentejo através dos livros que publica. E particularmente a Ribeira de Nisa onde cresceu, e que agora é “ponto de encontro” da família. “Volto sempre com grande alegria e emoção”, nota. Refere ainda que as publicações sobre o território o levaram a perceber que “as pessoas muitas vezes não têm noção do que nele existe, para além do que estudam e ou conhecem da sua própria região, da dimensão que é o Alentejo”. A enorme região, um terço do país, onde se cruza “uma multiplicidade de pensamentos e de manifestação culturais quase como tantas pessoas existem”, tendo na Casa do Alentejo “o epicentro dessa diversidade, pois é ali que se funde o sentimento do Alentejo geral”.

Fernando Mão de Ferro lamenta que em muitas situações o Alentejo tenha ficado esquecido, se calhar porque “não foram unidas forças de toda a região”, na falta de uma voz geral de fundo em termos de reivindicação. “Do ponto de vista administrativo não condeno [a divisão] porque às vezes é a mais fácil gerir as coisas dessa forma. As pessoas em si é que não podem pensar que isso possa servir de algum modo para as dividir”, conclui.

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