Ocaso explica-se de forma rápida. Mal tinha iniciado a obra de construção do novo Hospital Central do Alentejo, em Évora, já a empresa espanhola Acciona estava a reclamar pagamentos a mais num valor entre 60 e 65 milhões de euros. A empreitada foi ajudicada em julho de 2021 por 148,9 milhões de euros. Em dezembro desse ano, a Acciona apresentava à Administração Regional de Saúde (ARS) do Alentejo um “pedido de compensação por alteração de circunstâncias resultante da subida anormal e imprevisível dos custos de produção”.
A empresa argumentou com a escalada do preço das matérias-primas e da mão-de-obra, na sequência da pandemia de covid-19, reclamou o tal pagamento suplementar e sugeriu a constituição de um tribunal arbitral ad hoc para resolver o assunto. A ARS do Alentejo aceitou a proposta da empresa e é essa a primeira “ilegalidade” encontrada pelo Tribunal de Contas. Desde logo porque no contrato público assinado entre a ARS do Alentejo e a empresa espanhola consta o Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Beja como o foro para a resolução de eventuais litígios que viessem a ocorrer durante a execução da obra.
“A ARS do Alentejo não estava obrigada a aceitar a proposta da Acciona de constituição de um tribunal arbitral; uma vez que foi esse o fundamento do ato de aceitação, ele está viciado e, logo, a aceitação foi ilegal”, resume o acórdão, consultado pela “Alentejo Ilustrado”, sublinhando que esta decisão pode implicar para o Estado custos de 176 mil euros destinados ao pagamento de honorários dos árbitros e encargos, a que se somam mais 120 mil euros pela contratação de “assessoria jurídica especializada” a um escritório de advogados de Lisboa. Esta contratação corresponde à segunda “ilegalidade” agora apontada, como adiante se verá.
O recurso à constituição de um tribunal arbitral, e não ao TAF de Beja ou a um centro de arbitragem institucional, foi iniciado pela ARS do Alentejo em dezembro de 2021. Por esta atura, já esta entidade tinha “chamado a atenção” da empresa “para os deslizes no prazo de execução, já verificados e, bem assim, para a possibilidade de paragem definitiva [da obra], o que poderia ocorrer se a Acciona não for devidamente compensada, por não poder suportar os extracustos previstos”. Dias antes, a situação tinha sido comunicada ao então secretário de Estado da Saúde, a quem foi pedida “autorização para a outorga do compromisso arbitral e constituição do tribunal arbitral ad hoc, e para a contratação de equipa de assessoria jurídica especializada”.
Em janeiro de 2022 a ARS do Alentejo transmite à empresa a sua concordância com a decisão de submeter o litígio “a um tribunal arbitral não integrado em centro de arbitragem institucionalizado, atenta a complexidade da matéria e a necessidade de uma decisão rápida, geradora de segurança jurídica essencial à concretização do interesse público”.
A auditoria, cujo objeto se circunscreve a esta decisão, inclui a documentação enviada ao tribunal arbitral, na qual são evidentes as diferenças entre o valor a mais reclamado pela empresa (de 60 a 65 milhões de euros) e os 37,6 milhões calculados pela ARS do Alentejo, que justificou a opção pela arbitragem devido ao “elevado valor económico das questões a resolver e ao teor eminentemente técnico das mesmas”, bem como à necessidade de “procurar uma solução justa e equitativa no mais curto prazo de tempo”.
“É previsível que no âmbito de um contrato de empreitada com este valor possam surgir litígios de diferente natureza com o empreiteiro, que exijam, na falta de acordo, o recurso à via judicial”, reconhece o Tribunal de Contas, sublinhando que “questão diversa é a de saber se no âmbito da contratação pública poderá essa modificação ter por conteúdo o recurso a uma instância arbitral”. Para o Tribunal a resposta é clara, “não pode”, pelo que a decisão foi “ilegal”.
No processo não faltam notas curiosas. Uma delas foi o facto da opção pela arbitragem não ter sido comunicada ao Tribunal de Contas, que apenas tomou conhecimento do caso pela comunicação social, o que a ARS do Alentejo explicou com “um lapso de comunicação interna, pelo qual se penitencia”. Outro dado curioso: a Acciona propôs que a sede de arbitragem fosse em Évora, onde está a ser construído o hospital e onde funciona a ARS do Alentejo, mas esta entidade recusou, tendo sido instalada num escritório de advogados em Lisboa. Neste último ponto, o acórdão também não é brando, considerando que “constitui um desrespeito do princípio da transparência e da separação em todos os níveis entre a advocacia e um tribunal arbitral”.
MAIS “ILEGALIDADES”
Uma segunda “ilegalidade” apontada pelo Tribunal de Contas prende-se com o recurso à contratação, por ajuste direto, de um escritório de advogados para serviços de assessoria jurídica no âmbito deste processo, no valor de 97.500 euros acrescido de IVA.
No contraditório que apresentou, a ARS do Alentejo indica que esse escritório de advogados já tinha prestado assessoria jurídica no âmbito do processo relativo à empreitada e acrescenta: “Não é qualquer jurista ou advogado que se encontra habilitado para trabalhar com o rigor que se pretende e a experiência requerida, em processos desta natureza”.
Nesta questão, o acórdão refere que a prestação de serviços anteriores “não poderia ser um critério”, pois, se assim fosse, “seria criada efetivamente uma relação de exclusividade na prestação dos serviços jurídicos”. Daí considerar “ilegal” a sua adjudicação por ajuste direto, atendendo ao objeto [do contrato] e ao serviço”, que onera o Estado em quase 120 mil euros.
A terceira “ilegalidade” detetada pelo Tribunal de Contas prende-se com o pagamento dos honorários ao presidente e à secretária do tribunal arbitral estar “a ser realizado a uma sociedade de advogados e não diretamente às pessoas designadas para o exercício de tais funções” o que “carece de fundamento legal” pois esses pagamentos à empresa “não respeitaram a qualquer contraprestação efetiva”.
Há ainda uma outra questão apontada pela auditoria e que se prende com os encargos com o tribunal arbitral, calculados pela Acciona em 130 mil euros, mas que na contraproposta da ARS do Alentejo subiram para 353 mil euros (170 mil dos quais a suportar pelo Estado), num “incumprimento grave das disposições legais”.
“A opção da ARS do Alentejo”, justifica esta entidade”, “foi pela adesão a um modelo padronizado, que inclui regulamentação e tabelas próprias, conhecidas e aplicadas pela generalidade dos contraentes, Estado incluído, que não limitasse, à partida, a defesa (…) bem assim, a escolha dos melhores e mais capacitados árbitros para decidir o litígio”.
A Alentejo Ilustrado enviou um conjunto de questões ao Ministério da Saúde para perceber os passos que serão dados pelo Estado na sequência desta auditoria, não tendo obtido resposta. O processo foi remetido ao Ministério Público.