José Pinheiro (ensaio): “Montes alentejanos. Património a salvaguardar”

Foi durante o liberalismo que o monte alentejano terá atingido o seu apogeu como unidade económica e como forma de povoamento. É um património que urge salvaguardar.José Pinheiro (historiador)

Monte, em sentido geomorfológico, significa elevação de terreno. No Alentejo adquire também um sentido relacionado com a atividade agrícola e afins e o povoamento: tanto pode significar a herdade como a construção que é o centro de toda a exploração.

“O monte agrícola é como o quartel-general de todas as atividades concernentes: residência do dono ou do seu feitor; estância do pessoal permanente; arrecadações, estábulos, depósitos, etc. Está num alto dominante da área agrícola, como castelo rouqueiro de vigia e centro de ação, centrípeta e centrífuga”. Aborda-se aqui o “monte” segundo este último significado.

As mudanças ocorridas nas últimas décadas (tecnológicas, económicas, sociais…) levando rápida e ptogressiva à perda de muitas das funções que mantiveram viva essa realidade que chamamos montes.

Aqui se pretende, modestamente, contribuir para chamar a atenção deste património tão característico da nossa região. Apresentam-se alguns dos seus aspetos arquiteturais e descrevem-se espaços (interiores e exteriores), procurando não descurar estudos relacionados com a arquitetura tradicional portuguesa, nomeadamente os de Orlando Ribeiro, Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano e José Manuel Fernandes.

Nota histórica

O Alentejo é pouco povoado, por razões históricas e geográficas. À medida que o processo da reconquista se desenrolava, os reis doavam grandes parcelas de terra, desabitadas ou fracamente povoadas. Essas doações eram dirigidas quer a senhores particulares, quer a instituições religiosas, quer mesmo a comunidades de povoadores.

“[Muitas] herdades alentejanas são restos de latifúndios que se constituíram durante a reconquista em enormes áreas desertas. Antes do povoamento, fixaram-se os limites da propriedade (…)”.

No entanto, a estrutura da propriedade típica da região alentejana, o latifúndio, pode remeter-nos também para a época do domínio romano, com a tão característica “villa” (de que a “villa” de Torre de Palma, Monforte, é um bom exemplo).

Na documentação da Idade Média encontram-se muitas referências a montes. No entanto, foi no século XIX, a partir da segunda metade de oitocentos, que se constituiu o essencial da divisão fundiária no Alentejo, bem como os terratenentes, cujos descendentes ainda hoje, grosso modo, persistem. O liberalismo vai provocar a entrada no circuito capitalista da atividade agrícola, inclusive de inúmeras terras na posse da Igreja, “bens de mão morta”, que não eram alienáveis. O monte terá atingido então o seu apogeu como unidade económica e como forma de povoamento.

Os novos proprietários promoveram o arroteamento das terras em larga escala. Já na década de 30 do século XX, esse trabalho prosseguiu, ainda impulsionado com a “campanha do trigo”, generalizando-se a utilização de adubos químicos. A produção aumentou, mas a redução do coberto vegetal, num regime de monocultura extensiva, provocou a erosão e o cansaço dos solos. Com a mecanização da agricultura, em grande medida causa e efeito da emigração, o interior do país despovoa-se. Com as facilidades de transporte, os montes deixam de constituir um elemento importante no povoamento.

1. Alguns aspectos de morfologia arquitetónica

1.1. Coberturas

Os telhados são predominantemente de uma ou duas águas, sempre com pouca inclinação. Das observações realizadas, concluímos que estes telhados de duas águas, na parte destinada a habitação, são na prática dois telhados de uma água, adjacentes na parte superior, onde repousam numa parede alta, que atravessa o edifício. Cobertura “estrutural”, com “madre” ou “em asna”, encontramo-la em dependências não destinadas a habitação, por exemplo nas quadras ou cavalariças. Veja-se o caso dos Montes dos Lobatos, Herdade Grande e Atoleiros, Fronteira. Neste caso, julgo que se explica pela neces- sidade de mais espaço, de maior liberdade de movimentos.

De referir também como possível resquício de tradição ancestral, a “pombinha”: um curioso prolongamento cerâmico na ponta do beiral, com diversas variantes, e que Leite de Ataíde defendeu corresponder a mito fálico petrificado. Ainda no monte Dordem, o pombal apresenta um telhado que é muito característico na casa saloia. Trata-se de telhado que faz lembrar uma lona de tenda, que parece ter origem mourisca.

1.2. Chaminés e lareiras

Na arquitetura tradicional alentejana, as chaminés constituem algo de emblemático, tanto na casa do povoado como no monte. Os vários autores que têm trabalhado esta temática, não poupam elogios às suas qualidades cenográficas e intenção decorativa. Mello de Matos estabeleceu uma classificação que, exteriormente, as divide quanto à base, em retangulares, quadradas e circulares e, quanto à forma, em prismáticas, cilíndricas e piramidais. Interiormente, podem ser ao correr de uma parede ou, menos frequentemente, de canto (como observámos no monte ou cabanas de João Luís).

1.3. Pavimentos

O chão da casa de habitação é, por norma, lajeado a xisto ou revestido a tijolo. Nas dependências do gado muar ou cavalar, de terra batida ou calcetada. Pavimento em soalho só nos raros casos em que o monte apresenta andar superior e aplicado a esse andar: como no monte Reboredo de Baixo. Exteriormente, a “rua” ou pátio do monte é de terra batida, calcetada, em pedra viva, ou lajeado de xisto. Por vezes, o gosto artístico próprio do alentejano está patente até na calçada!

1.4. Janelas e portas

Por regra, poucas aberturas. Tal deve-se à técnica construtiva, mas também às características climáticas. Os alçados, na maior parte das vezes, são cegos, isto é, sem qualquer abertura. A frontaria chega a ter como única abertura a porta, neste caso necessariamente munida de postigo.

2. Arquitetura de terra

Já Orlando Ribeiro referia uma “civilização do granito”, a norte; e uma “civilização do barro”, típica do sul, que possibilita “uma luminosidade ligada ao uso de materiais ‘macios’, tratados a fogo e revestidos a cal”. A habitação tradicional utiliza materiais que estão à mão, muitas vezes não comprados, em bruto ou com um ligeiro aperfeiçoamento.

No entanto, as características da casa tradicional não se explicam unicamente por fatores físicos, geográficos ou climáticos.Naturais, portanto. A herança cultural é igualmente determinante. Julgo poder concluir-se que a casa é fundamentalmente um produto cultural, onde se conjugam todos os outros fatores de adaptação ao meio.

Episódio bastante elucidativo do que acabamos de referir foi o que se passou em França, após a I Guerra Mundial. Quando se procedeu à reconstrução, constatou-se a resistência por toda a parte da população rural quanto à intenção de renovar a arquitetura: queriam apenas “a sua casa”, eventualmente com pequenas alterações.

Outros exemplos se poderiam dar, que ilustram o apego à cultura arquitetónica herdada: verificamos frequentemente que, a par da cozinha de acordo com os padrões atuais, a existência de uma segunda cozinha, de acordo com os modelos tradicionais e que se torna o centro da vida doméstica.

A casa do sul, e também o monte, utilizava tradicionalmente os chamados materiais macios ou dóceis: a alvenaria ordinária de pedra, que por vezes se combina com a taipa ou adobe, oferecendo condições construtivas surpreendentes. O tijolo maciço é utilizado sobretudo nos pontos mais sensíveis da construção: chaminés, ombreiras, vãos, cunhais, abóbadas.

Esta técnica construtiva, com a sua enorme plasticidade, vantagens ecológicas e qualidades de isolamento térmico, faz com que ainda se perspetive com potencialidades futuras: vantagens energéticas (cerca de 50% para a climatização), redução da energia necessária à produção industrial do aço, do cimento e do tijolo cozido, bem como do seu transporte até aos locais de construção.

Segundo o que nos foi relatado, a alvenaria ordinária de pedra era realizada em simultâneo por dois pedreiros (também designados por alvanéus), dispostos um de cada lado da parede a construir, utilizando pedra solta e barro. Todo o conjunto era rebocado dos dois lados e depois caiado.

Por vezes, as paredes são reforçadas exteriormente com gigantes ou contrafortes, aquando da construção ou em momento posterior, verificando-se a necessidade desse reforço estrutural.

A taipa é uma técnica antiga, de que os árabes eram exímios praticantes, em que se utiliza painéis de madeira desmontáveis, os quais vão sendo deslocados verticalmente, à medida que se enchem de areia, pedra solta e barro, a que por vezes se junta palha. Posteriormente, as paredes são rebocadas e caiadas interior e exteriormente.

A caiação representa operação importantíssima na sua preservação e tem de ser realizada periodicamente. A cor usada é sempre o branco, o que reforça as características isolantes térmicas. Os rodapés, molduras de portas e janelas e, por vezes, os cunhais e beirados são caiados em cores vivas, geralmente ocre ou azul. De acordo com a recolha oral que realizámos, acredita-se que estes elementos têm a finalidade de afugentar os insetos…

3. Tipologias, espaço interior e exterior

Já referimos os dois grandes modelos de ocupação de espaço do território que é Portugal Continental, tal como foram definidos por Orlando Ribeiro. “Esta leitura, que remete para dois grandes universos geoclimáticos, o do Atlântico (granito) e o do Mediterrâneo (barro), mas também histórico-culturais (o Portugal celto-suevo ‘cristão’; e o Portugal romanizado e o moçárabe) completa-se e complexiza-se com inúmeras leituras de pormenor e desenvolvimento”.

Entre estes estão outros modelos como os das “casas redondas”, estudadas por Veiga de Oliveira, e que se encontram tanto a Norte como a Sul do território português. Este modelo não terá vingado, pelo menos como espaço de habitação, talvez devido – entre outras – às dificuldades inerentes ao desenvolvimento modular. A planta quadrangular/rectangular foi pois o modelo adotado genericamente para a tipologia da casa, incluindo a casa de campo.

Em termos gerais, podemos afirmar que o monte é geralmente uma construção térrea, em que as instalações para animais e de apoio à atividade agrícola são independentes da parte correspondente à habitação (diferente, portanto, da casa do norte). Mostram frequentemente uma planta em que as divisões se sucedem umas às outras, com poucos corredores próprios para a circulação.

3.1. Fornos

Os fornos são um elemento que se aproxima da “casa redonda”, apresentando-se separados da habitação. No Monte da Dordem surge acoplado a uma chaminé de uma cozinha independente. Esta tipologia (forno/ chaminé/cozinha) é comum noutras regiões, nomeadamente na casa saloia. Em todos os casos observados, o forno é uma construção independente.

Por norma apresenta um alpendre ou sala, com um poial de cada lado, para colocar os tabuleiros do pão. Por cima da abóbada está o telhado e todos os alçados são caiados e rebocados, à semelhança das restantes construções do monte. Interiormente, a abóbada não é rebocada (tijolo-burro à vista). Foi-nos descrito que esta abóbada semiesférica é construída com o auxílio de um fio fixado no centro do “solo” e a outra extremidade do fio conduz a colocação das fiadas de tijolos em círculos cada vez mais estreitos e com a inclinação adequada.

3.2. Cozinha

A cozinha, divisão ampla, pode considerar-se o centro nevrálgico do monte, como aliás também se constata na habitação tradicional de povoado. Com acesso direto para a rua do monte, através duma “casa de fora” ou corredor (neste caso, temos o exemplo do Monte dos Lobatos).

As lareiras estão ao nível do solo e sempre encimadas por chaminé, apresentando interiormente o pano da chaminé, que se apoia num pilar ou parede lateral. No pano da chaminé é frequente, na sua parte inferior, correr um friso – que por vezes se prolonga nas paredes laterais, como acontece no monte da Dordem.

Em todas as chaminés, por detrás de onde arde “o lume”, existe uma proteção da parede, de contornos geométricos, em granito, xisto ou tijolo maciço a que se dá o nome de “boneca”. Em especial nos montes desabitados, verificámos que a boneca foi arrancada, possivelmente por furto e/ou para reutilização noutro local. Por vezes assume uma configuração antropomórfica, o que parece filiar-se nas divinda- des caseiras romanas, e com origens ainda mais remotas.

A falta de recursos ou a busca de funcionalidade provoca uma verdadeira integração ou simbiose entre arquitetura e mobiliário: pilheiras “metidas” nas grossas paredes, armários de canto, poiais (ou piais), cantareiras…

3.3. Casa dos ganhões

Por casa dos ganhões, ou casa da malta, entende-se as instalações dos moços da lavoura. Segundo Silva Picão, a desarrumação e a falta de higiene eram a tónica deste espaço, já que “o arranjo, a compostura e o asseio compete às mulheres”. Este espaço apresenta em regra uma chaminé. Por vezes, tem os locais das tarimbas, em alvenaria e tijolo (caso do Monte dos Aroeirais). Mas como informa Silva Picão, qualquer outra estrutura mais simples servia de tarimba: leitos de carros velhos, portas inutilizadas, tábuas, etc.

3.4. Rua do Monte e pátio do Monte

Na sua forma mais simples, a rua do monte, ou seja o espaço em frente ao monte, tende a evoluir para a configuração de pátio, aberto ou fechado, à medida que se vão construindo mais dependências. No entanto, o monte das Antas foi construído na década de 40, já com a forma em U. Entre estes dois modelos, há uma diversidade de modelos intermédios, que se aproximam mais de um ou de outro.

“A casa-pátio em geral (…) pode cer- tamente relacionar-se com regiões planas e com agricultura em regime extensivo, onde o problema de espaço se dilui: tal como pode ser o caso casa-pátio do Alentejo, que não é estranha ao sistema de grande propriedade e da economia agrícola quantificada”.

3.5. Monte térreos e de andar

Outra divisão que se pode estabelecer é entre os montes térreos (a maioria) e os de andar. No Monte da Dordem, curiosamente, o andar superior serve (ou servia) de celeiro, o que foge à tipologia habitual. O carregamento do cereal era feito por uma escada lateral, exterior. O Monte do Beringelo tem, igualmente um piso superior, utilizado como arrecadação. Esta disposição, em andar superior não destinado a habitação, parece indiciar um instinto de defesa e de posse.

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