Perfil do jornalista e escritor Fernando Fitas. “A poesia enquanto arma”

Nascido em Campo Maior, “maltês que não aceita facilmente nenhum tipo de disciplina imposta”, Fernando Fitas é autor de uma extensa obra poética, várias vezes premiada. “O que escrevo não é inócuo, tem conteúdo social e político”, diz o poeta. Será, talvez, uma herança dos muitos anos de jornalismo. Júlia Serrão (texto)

Durante algum tempo utilizava a poesia como nós no Alentejo utilizamos a palavra pousio. Para descansar da linguagem jornalística que é muito estandardizada”, diz Fernando Fitas, jornalista e poeta alentejano de Campo Maior, criado na Margem Sul do Tejo, local de eleição para uma boa parte da diáspora alentejana.

Deu a conhecer o seu primeiro livro de poesia em 1978, hoje tem vasta obra publicada. E premiada. Só em 2023 conquistou o Prémio Joaquim Pessoa, com “Um Corpo Sob o Pó”, e venceu o Prémio Literário Carlos Carranca com “A Clandestina Idade dos Pequenos Segredos”. Nota que o que escreve “não é inócuo, tem sempre uma mensagem, um conteúdo social e político, ainda que não partidário”.

Ser poeta muito premiado “é gratificante”, mas não é o que faz escrever. Ainda assim lamenta ser “praticamente ignorado” pelas câmaras do Alentejo, com exceção da de Cuba, que no ano passado o convidou “para ir ao aniversário da Casa-Museu Fialho de Almeida, e da de Castro Verde no tempo em que o Fernando Caeiros era presidente”.

Depois de muitos anos ignorado pela Câmara de Campo Maior, “o quadro alterou-se recentemente, embora se trate da mesma força política”. Diz que é um contrassenso, na medida em que é reconhecido noutras regiões do país. “Eu lido bem com a situação, mas é um facto”.

Para além da poesia que é criação constante e integra 25 obras, tem cinco outras em prosa. Dois livros de crónicas e reportagens resultantes da sua atividade jornalística, essencialmente na Margem Sul. Um tem a ver só com Almada, “temas de caráter social, cultural e associativo. O outro com reportagens de vários concelhos”.

O terceiro “é uma ficção a partir das memórias que guardei da infância no Alentejo. Aborda as questões sociais que tiveram a ver com o fenómeno da emigração do Alentejo para Lisboa, as crises de trabalho, e a praça da jorna”. Deu-lhe o título “Cantos de Baixo”, que é o nome do largo de Campo Maior onde “todas as tardes se juntavam os homens, como se fosse uma praça de animais, para serem comprados pelos latifundiários”.

Os restantes livros em prosa escreveu-os para a Câmara Municipal do Seixal durante sete anos e “é uma recolha de memórias, vivências e episódios”. O primeiro tem a ver com filarmónicas centenárias, o outro com coletividades de cultura, recreio e desporto, e o último com clubes de futebol federados.

Diz que o primeiro era recomendado “pelos professores Fernando Rosas e Moisés Espírito Santo, sempre que os alunos tinham de fazer trabalhos relacionados com coletividades, e com problemas colocados pelo antigo regime ao movimento associativo”. Algumas destas coletividades tinham grande atividade, sendo frequentemente alvo da PIDE – uma foi fechada depois de um concerto do Coro dos Amadores de Música do Lopes Graça.

Fernando Fitas tinha cinco anos quando os pais foram viver para Lisboa. Foi com eles, mas aos seis voltou para Campo Maior para fazer a primeira classe, ficando em casa da avó materna e dos tios. “Quando voltei para Lisboa, a minha mãe trabalhava na zona da Paiva Couceiro e a patroa dela tinha uma amiga que era responsável da Casa do Ardina, ali bem perto. Fui para lá fazer o resto do ensino primário”.

Foi aí que se descobriu na prosa. “Nós fazíamos redações e o professor notou que eu teria alguma criatividade”. Começou a escrever no jornal da instituição, “O Ardina”, que saía todos os meses, frequentava ainda a terceira classe. “A partir daí”, conta, “comecei a ter o gosto pela escrita. A poesia vem mais tarde, por altura da adolescência. Não tive nenhuma formação académica, tenho o ensino secundário. Praticamente em tudo fui um autodidata, a formação que ia adquirindo era com a experiência”.

Em 1975 começa o seu percurso pelos media, como correspondente do jornal “O Século” na zona de Almada. Até 2011 é jornalista em várias publicações, imprensa e rádios essencialmente locais, chegando a assumir os cargos de chefia – foi fundador e diretor do quinzenário “Outra Banda” e chefe de redação do “Notícias de Almada” -,sendo que ainda passou pelos jornais nacionais “24 Horas” e “Tal &Qual”.

A partir desse ano começa a dedicar-se, quase em exclusivo, à poesia. Assegura que não tem saudades de fazer jornalismo. “Face ao panorama atual, nem me ocorre uma réstia de pensamento em voltar”, lamenta.

MEMÓRIAS DO ALENTEJO DÃO MOTE À POESIA

Ainda escreveu letras para canções, mas desistiu por achar a “linguagem redutora e limitativa”. “Eu gosto mais de poesia livre e expresso-me sobretudo através dela”, observa. Todos os dia escreve qualquer coisa, um poema, ou parte de um poema que dias depois volta a pegar para desenvolver. “Vou criando, imaginando a partir dali. Este é o meu hábito diário”.

O seu último livro, intitulado “Levar às Mão Lume”, foi apresentado em Campo Maior em abril deste ano, no âmbito das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos. O poeta explica que é diferente dos anteriores, na medida em que os poemas não têm continuidade entre si. São independentes e “abordam questões de natureza política, social e histórica”.

Um dos primeiros inspira-se na memória de coisas que a avó lhe contava sobre a guerra civil de Espanha e dos refugiados que fugiam para Campo Maior, onde a população os escondia dos soldados da GNR, às vezes até em pocilgas de porcos, para não serem levados e entregues aos franquistas. Sempre se sentiu impressionado por essas histórias reais, da guerra e dos refugiados, “que é uma temática atual e muito presente”.

Fernando Fitas diz-se muito ligado ao Alentejo que, “ainda que de forma inconsciente, ocupa grande espaço” nos seus livros. O território é sinónimo de raízes e memórias felizes dos anos que aqui viveu, das férias, da família. “Tive a infância de uma criança que vive a liberdade, porque não tinha nada que me prendesse. Tínhamos espaço para brincar, correr, jogar à bola, ir aos pássaros… tomar banho na ribeira”.

Numa entrevista ao “Diário do Alentejo”, definiu-se como “um maltês que não aceita facilmente nenhum tipo de disciplina imposta, não professa nenhuma religião, não milita em nenhum partido político, não frequenta nenhuma ‘capelinha’, nem é adepto de nenhum clube de futebol. Parafraseando um amigo de infância, sou um ‘revoltilho’, postura que assumi desde tenra idade, segundo o que dizem os vizinhos dos tempos de meninice”.

Hoje, olha o Alentejo com grande apreensão. “O Alqueva foi extremamente importante em termos de desenvolvimento económico, no que concerne a garantir postos de trabalho, mas há coisas que me ferem mais do que a vista, ferem a alma. E uma delas é a paisagem”. Prevê que a substituição da paisagem tradicional pelo olival e amendoal intensivo tornem a terra estéril, daqui a uns anos. “A região corre o risco de qualquer dia se tornar num deserto. Para além das questões climáticas que concorrem para isso, essa produção ainda acelera de modo significativo esta problemática”, lamenta o poeta.

“LEVAR ÀS MÃOS O LUME”, de Fernando Fitas

Lema d’Origem Editora, 88 páginas, 13,00 euros

No seu último livro, lançado em abril deste ano, Fernando Fitas reúne um conjunto de poemas escritos há sete/oito anos, os quais, pela sua natureza, não cabiam em nenhum dos livros entretanto publicados pelo autor, designadamente por se tratar de textos que visam “denunciar arbitrariedades e injustiças que para além de nos ferirem a vista, nos ferem sobretudo a alma”.

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