Lançada coletânea em audiolivro para divulgar o património de Estremoz

Em “Conhecer Estremoz e a Sua História. Do Bronze ao Medievo”, António Manuel Braz reúne textos da sua autoria, muitos outros publicados ao longo das décadas no “Brados do Alentejo”, e outros ainda de autores de referência para a história da cidade. Alentejano na diáspora, diz que a obra não tem fins lucrativos, destinando-se “unicamente ao benefício das pessoas portadoras de incapacidades e necessidades especiais”. Luís Godinho (texto)

Corria o mês de novembro de 1281 – é Marques Crespo quem o conta – quando o rei D. Dinis se reúne com três “personagens” numa sala da alcáçova real do castelo de Estremoz, que ele próprio havia mandado construir. “Era um jovem de 20 anos, sobre cujos ombros pesava já o terceiro ano de governação com múltiplos problemas próprios dum igualmente jovem país”, escreve Marques Crespo, fundados do jornal “Brados do Alentejo”, acrescentando que um desses problemas era o do seu próprio casamento. Foi esse, aliás, o tema da reunião.

O texto original publicado no livro “Estremoz e o seu Termo Regional” (edição de autor, 1950) é um dos que António Manuel Braz selecionou para integrar uma obra para ser lida ou ouvida´, e que reúne elementos históricos sobre a cidade de Estremoz, muitos deles publicados no “Brados do Alentejo”, outros provenientes das mais variadas fontes. A começar, claro, pelas bibliográficas.

Com D. Dinis, nesse dia, encontraram-se três homens da sua inteira confiança: João Pires (ou Peres), João Mendes e Vasco (ou João) Velho. “Divergem os nomes nos testemunhos escritos consultados”. O rei fala-lhes então “duma princesa que só conhece por informações entusiásticas, quer dos seus encantos físicos, quer dos morais e culturais”, passadas por “trovadores e amigos que de corte em corte esmiuçam todas essas novidades e subtilezas como o seu companheiro de trovas Pedro Dalora que da princesa lhes fala sempre como se de personagem de um conto de fadas se tratasse, e com tais sortilégios de palavras e imagens como só os poetas e os loucos são capazes de o fazer em deslumbramento linguajar”.

Continuemos a acompanhar o relato de Marques Crespo: “Depois de ouvidas as ordens do rei, analisadas e ponderadas até aos mais ínfimos pormenores, que o caso não era para menos, num ajuste deste peso e medida, os três personagens depois das saudações da praxis, abandonaram a sala, atravessaram o pátio do castelo e, procuraram, certamente, reunir seus indispensáveis aprestos para tão longa viagem e complexa empresa”.

Saíram pela Porta do Sol, desceram a encosta e dirigiram-se para a fronteira, que cruzaram no Caia, com destino à corte aragonesa, “lá no outro quase extremo” da Península Ibérica. “Foram estes três personagens que, em nome de D. Dinis, em Barcelona, em 11 de fevereiro do ano seguinte, assinaram o casamento por procuração perante o bispo de Valência”. Isabel de Aragão, a Rainha Santa, entraria em Portugal em junho de 1282. O resto, incluindo a sua estreita relação com Estremoz, é história demasiado longa para ser contada neste artigo.

Nascido em janeiro de 1953 na freguesia de Santo André, em Estremoz, onde fez todo o seu percurso escolar, António Manuel Braz é dos milhares de alentejanos na diáspora, tendo trabalhado como desenhador-projetista em duas empresas de obras públicas. “Fui feliz na profissão que escolhi”. No entanto, com apenas 44 anos, viu-se forçado a parar por sucessivos descolamentos de retina.

“Depois de longo período de cirurgias oculares, que pouco resultaram, acabei cegando por completo. Apesar deste enorme golpe naquilo que idealizei para a minha vida, não desisti de ser alguém com objetivos. O mais querido para mim, e que sempre me apaixonou, foi a História. E nessa área destacou-se sempre a que a Estremoz diz respeito”, conta António Manuel Braz, sublinhando a circunstância de, embora longe da sua terra natal, “sempre a ter amado e descoberto tanto dela” através da pesquisa histórica.

O livro que agora edita enquadra-se na vontade de partilhar os muitos caminhos a que essa descoberta o conduziu, aqui reunindo um “vasto acervo de artigos, crónicas, notícias e outros textos que andam dispersos por várias publicações (alguns, em risco de se perderem), dando assim um valioso contributo para a divulgação do património histórico-cultural de Estremoz”,como sublinha Inácio Grazina, ex-diretor do “Brados do Alentejo”, no texto de prefácio.

DECAPITAÇÃO DO BISPO

Aproveitemos as páginas coligidas por António Manuel Braz para dar um “salto” de 40 anos na cronologia histórica da cidade, ao encontro do assassinato do bispo de Évora, Dom Geraldo Domingues de seu nome, deixando-nos guiar por uma crónica de Joaquim Vermelho, inserida em “Nas Lavras do Tempo, Sementes e Raízes” (2003).

“O trágico episódio”, conta Joaquim Vermelho, ocorreu a 5 de março de 1321, e teve como protagonistas, além do bispo, Nuno Martins Barreto e Afonso Novais, os dois fidalgos que o mataram, e que se fizeram acompanhar até Estremoz pela sua “tropa de choque, para golpes baixos menos limpos”, executando “um ajuste de contas com o chefe da diocese”. Tudo se passou na praça do castelo, entre a Igreja Matriz e o Paço da Audiência, e por causa de dois filhos do rei D. Dinis – Afonso, o primogénito, e Afonso Sanches, bastardo -, estando em causa “invejas e despeitos agravados pelo facto de o rei e sua mulher tratarem e protegerem por igual tanto uns como outros”.

Refere Joaquim Vermelho que o destino do bispo ficou traçado quando o Papa João XXII o encarregou de executar o cumprimento de uma bula “visando a aplicação de penas espirituais de excomunhão aos que perturbassem a paz da governação do reino”. Ora D. Afonso, o príncipe herdeiro, que no ano seguinte entraria em guerra com o pai, resolveu “cortar o mal pela raiz”, sendo que neste caso o verbo “cortar” é para levar à letra.

Sabendo da presença do bispo em Estremoz, foi para aqui que mandou os dois fidalgos. “Dissimulados, introduziram-se na praça e, protegidos pela noite, indo direitos à pousada onde o bispo se instalara e donde o arrancaram, liquidando-o friamente, da forma mais bárbara, cortando-lhe a cabeça, e pondo-se seguidamente a salvo das naturais e indignadas reações da gente local”. Aos “servidores” de D. Geraldo Domingues mais não restou que “reunir, piedosamente, os destroços humanos do seu amo e levá-los para a Sé de Évora, onde foi digna- mente sepultado”.

Já aqui se referiram os nomes de Marques Crespo e Joaquim Vermelho. “Estremoz”, lembra António Manuel Braz, “conheceu alguns filhos seus que amaram a cidade e escreveram sobre ela”. A estes acrescenta o nome de António Henriques da Silveira, entre outros, recordando que um “dos veículos” para a difusão do conhecimento sobre a história local têm sido as páginas do “Brados do Alentejo”. Daí à ideia do livro e audiolivro agora editado foi só o tempo necessário ao amadurecimento do projeto.

“Pensei em pegar nas crónicas históricas do jornal, que outras pessoas escreveram ao longo do tempo, e fazer um livro sobre o seu conteúdo. Foi o ponto de partida”, conta António Manuel Braz, acrescentando que a esses textos juntou outros, da sua lavra, sobre as mesmas temáticas. “Espero que este livro, que tanto prazer me deu a escrever, seja portador de momentos de prazer para todos os que como eu gostam de história e de a dar a conhecer”, refere o autor, que já assinou outras três obras, tendo “transformado” em áudio mais de três dezenas de livros e assinado outros tantos fonogramas. “Tudo foi fei- to pensando nas pessoas que, como eu, têm necessidades especiais de leitura”, refere.

FRUTA E COLHERES DE PAU

Num último “salto histórico” dedicado a este projeto de António Manuel Braz avançamos agora 180 anos contados a partir da data em que o bispo perdeu a cabeça na praça de Estremoz. Estamos agora a 27 de junho de 1481, dia em que o rei D. Afonso V outorga “uma curiosa carta de privilégio a uma certa Margarida Gonçalves, moradora em Estremoz, responsável pela venda a miúdo da fruta que à vila era trazida pelos eremitas da Serra d’Ossa e de Vale de Infante”.

A existência da carta foi revelada pelo historiador João Luís Fontes, do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa, nas páginas do “Brados do Alentejo” em setembro de 2009. Conta o historiador que a carta autorizava Margarida Gonçalves a “fazer a venda por todo o espaço urbano, sem qualquer limitação, permitindo o fácil escoamento do produto e obviando à sua deterioração”. Trata-se, prossegue, de “um diploma” interessante pois “abre-nos a porta para a compreensão da relação” dos ermitas, “adeptos da vida solitária e pobre com os núcleos urbanos do sul durante os séculos finais da Idade Média”.

Escreve João Luís Fontes que a carta régia lembra ser na urbe “que os eremitas procuravam vender, por meio de algumas mulheres, o fruto do seu labor: as frutas dos seus pomares, o mel e as colheres de pau que as cartas régias repetidas vezes mencionam. Aí vinham também tratar de assuntos do seu interesse, dado ser na vila que se encontravam os oficiais capazes de lavrar os documentos de que necessitavam para comprovar bens e direitos; as autoridades municipais e, por vezes, os próprios monarcas e a sua corte”.

Daí que na então vila de Estremoz, os eremitas da Serra d’Ossa e de Vale de Infante “tenham desde cedo casas próprias onde poderiam estanciar. Sabemo-las situadas no castelo da vila, próximo da praça onde decorria muita da principal atividade comercial, favorecendo um mais fácil escoamento dos seus produtos”.

UMA OBRA “ESPECIAL”

A coletânea “Conhecer Estremoz e a Sua História. Do Bronze ao Medievo”, em que António Manuel Braz reúne textos da sua autoria, muitos outros publicados ao longo das décadas no “Brados do Alentejo”, outros ainda de autores de referência para a história da cidade, não tem fins lucrativos, destinando-se, segundo o autor, “unicamente ao benefício das pessoas portadoras de incapacidades e necessidades especiais, ou para fins exclusivos de auxílio a diminuídos físicos visuais ou auditivos”. O projeto foi executado pelo próprio António Manuel Braz, ele próprio invisual, e “só poderá aceder à leitura-audição dos artigos quem apresente o respetivo atestado de incapacidade multiúsos, mostrando incapacidade de 60% ou superior”.

A LENDA DO PEGO DO SINO
A cinco quilómetros de Évora-Monte, na ribeira de Tera, está o Pego do Sino. É um local estranho, que causa profunda impressão pelas suas negras penedias, que mais parecem muralhas a barrar o caminho aos destemidos, a fechar-se sobre eles, como se a natureza se sentisse ofendida por irmos ali devassar a sua intimidade.

Depois, é aquela cova imensa cheia de água, de que se não vê o fundo e nos faz tremer só de pensarmos de que se cairmos nela ninguém nos poderá de lá tirar e ali ficaremos presos, nos lodos do seu fundo, onde têm perecido tantos jovens que nelas se atrevem a mergulhar.
Já ali se têm encontrado pedras antigas dos mouros (leia-se dos romanos) com inscrições.

Pela primavera, quando há sol e os pássaros cantam, o local tem outra cara. Uma cara menos zangada, mas ainda assim respeitável.

Na noite de São João, à meia-noite, ouvem-se ruídos estranhos, como um repicar de sinos, como gritos de almas atormentadas. Ao mesmo tempo, veem-se luzinhas a brilhar por entre os penhascos, como olhos de alguém, refletindo espanto, angústia e, ao mesmo tempo, suplicantes. Diz o povo, que são almas errantes, penando por pecados graves que cometeram em vida. Outros, invocam mouras encantadas à espera do cavaleiro ou príncipe que venha libertá-las.

É um lugar de temor, de piedade e de curiosidade que estimula a imaginação do povo sempre ávido de tudo o que o transcende, de tudo o que toca a fronteira do invisível.


In “Lendas e Outras Histórias”, Escola Profissional da Região Alentejo, 1995

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