Fialho de Almeida gritava, gesticulava, andava de um lado para o outro no quintal da sua habitação em Cuba num momento de “irreprimível azedume” em que tudo lhe corria mal, fartava-se de trabalhar a terra sem ver qualquer resultado e as suas recomendações pareciam não ser acatadas. Responde-lhe o feitor que aquilo não era forma de conversar pois quem passasse na rua haveria de julgar que ele, feitor, praticara qualquer ato merecedor de uma reprimenda tão severa. Responde Fialho: “– Que lhe importa a você que oiça quem passa; não sabe que se eu falo assim é porque o considero como pessoa da família”.
O episódio, relatado por Xavier de Almeida (“Diário Popular”, 3 de abril de 1911) é revelador do temperamento simultaneamente colérico e generoso do escritor alentejano nascido em Vila de Frades, Vidigueira, a 7 de maio de 1857: “Era incontestavelmente um homem superior, pelo talento e pelo caráter. Nunca as seduções do interesse ou da vaidade, apesar de crises várias que o assediaram, con- seguiram pôr mancha no seu nobilíssimo orgulho”.
Passados alguns anos, o feitor morreu. Fialho “vestiu o seu fato das solenidades da aldeia” e acompanhou o cadáver à sepultura, sem esconder a emoção do momento. “Vi que pela sua face vincada depesar correram, em silêncio, lágrimas de saudade”. Era assim, irascível e cúmplice, este “incómodo pensador”, na definição que dele fez o falecido historiador Joaquim Palminha da Silva.
Aprendidas as primeiras letras, com o pai, é o rapaz enviado para o Colégio Europeu, em Lisboa. A morte do progenitor, em 1871, obriga-o a procurar emprego. Encontra-o na Farmácia do Altinho, no Largo do Mitelo, ao Campo de Santana, onde fica sete anos a “apodrecer” como praticante de boticário. “A baiuca era tão velha, infeta, escura e desornada, que ainda hoje me surpreendo da triunfância vital deste arcabouço, que pude resistir sete anos àquele inferno de ratos, pias rotas, miséria alimentícia e raçuns de unguentos pré-históricos”.
Durante esse período – igualmente gasto “a percorrer todos os lugares comuns dos escritores nacionais, e a matar o tédio desta leitura com romances de cadernetas, e pequenos ensaios literários de fábrica própria, para os jornais de província” – passou pelo Liceu Francês e pela Escola Politécnica, matriculando-se em 1879 na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, de onde saiu formado em 1885. Concluídos os estudos, só esporadicamente exerceu medicina, primeiro na Pampilhosa, depois no Alentejo. “O escritor tratou de cedo enforcar o médico”, frisa Cruz Malpique.
Em 1893 abandona Lisboa e regressa ao Alentejo, a Cuba, para casar com Emília Garcia Pego, senhora de posses, que viria a falecer no ano seguinte deixando-lhe herança. Torna-se um pequeno proprietário rural, passa a viver de forma desafogada mas sem, verdadeiramente, se habituar à vida provinciana: “É horrível a minha vida na aldeia.Se não fossem os livros já me tinha suicidado. Cada vez preciso mais de ver gente e desta vida artificial de Lisboa. Na aldeia, em Cuba, não falo com ninguém, não tenho ninguém com quem comunicar. (…) Ah, mas as noites!…Tenho noites em que pego num livro e saio. Há uma estrada em volta de Cuba e eu ali ando à roda toda a noite a falar sozinho como um condenado”, escreve numa carta a Raul Brandão.
A antiga habitação onde o escritor viveu durante 18 anos, na vila de Cuba, foi restaurada e transformada no Museu Literário “Casa Fialho de Almeida”, num investimento de cerca de um milhão de euros destinado a “devolver à memória coletiva” a vida e a obra do escritor e “o seu importante contributo para a literatura portuguesa”, segundo referiu o presidente da autarquia local, João Português, aquando da conclusão das obras.
O museu organiza-se em três espaços distintos: enquanto a antiga habitação, propriamente dita, dá agora lugar a um espaço museológico dedicado às várias esferas da vida pessoal e profissional de Fialho de Almeida, os casões que serviram de suporte à atividade agrícola acolhem uma exposição sobre a ruralidade e a etnografia, “temas recorrentes” na obra do escritor. Já o quintal, reabilitado tal como uma antiga adega destinada à produção de vinho da talha, está pronto a receber eventos culturais.
Chegados ao antigo escritório, aí encontramos primeiras edições (por exemplo, de “Aves Migradoras” e “Atores e Autores”, publicados já de- pois da sua morte), obras críticas (como “Introdução ao Estudo da Estética de Fialho de Almeida”, publicada em 1943 por Álvaro Pimpão, da Universidade de Coimbra) ou um conjunto de livros que pertenceu ao autor e que foi depositado na Biblioteca Nacional (BN).
Na cozinha que foi de Fialho, importa refletir um pouco sobre outra das suas áreas de interesse: a gastronomia. Numa das paredes, uma frase retirada de “Os Gatos”, plena de atualidade, prende-nos a atenção: “A desnacionalização da cozinha é para mim, talvez primeiro que a dos sentimentos e das ideias, revelada pela vida pública, o primeiro avanço indicativo da derrocada dos povos”.
Frase certeira, a que poderíamos acrescentar uma outra que, talvez por questão de espaço, ali não se contra escrita: “A coesão étnica duma raça revela-se principalmente por três coisas, literatura, história e comezainas: romances e poemas dando o caráter lírico e afetivo, a história dando o carácter heroico, finalmente os pratos nacionais dando o carácter físico – este último, como se sabe, impulsionando os outros dois”.
“PERDIZES À FIALHO”
Os mais interessados terão ainda tempo para anotar, durante a visita, os ingredientes e a forma de confeção do “Arroz de Perdizes à Fialho”, num refogado com manteiga, alho, salsa picada, pimenta, cravo da Índia e uma folha de louro, mais tomate e cebolinhas, uma massa picada com presunto, linguiça e os miúdos das perdizes. Enfim, vinho tinto, o caldo da cozeduras das aves e arroz, que ainda haverá de ir ao forno para “tostar e aloirar”.