Diz-me Eugénio Ampudia que “Abrigo dos Combatentes”, a exposição que agora inaugurou no Fórum Eugénio de Almeida, em Évora, tem para si um “significado especial”. Primeiro por ser comissariada por André de Quiroga, “um documentado, sensível e bom conhecedor de arte contemporânea”, a quem voltaremos neste artigo. Depois, por ser a segunda vez que expõe em Portugal. Mas sobretudo por refletir de um “modo bastante completo” o seu trabalho ao longo dos últimos anos.
“Vivemos tempos turbulentos”, sublinha aquele que é um dos mais reconhecidos artistas espanhóis contemporâneos a nível internacional, tempos em que as desigualdades se agravam e em que os “sistemas políticos que acreditávamos mais avançados e justos estão seriamente ameaçados pelo surgimento de atitudes autoritárias e xenófobas que se dissociam da razão e desprezam a verdade”.
Eugénio Ampudia olha para as novas gerações e regista que convivem com “a ansiedade daqueles que agem como se a humanidade estivesse num tempo estranho e difuso de descontos”. Ora, “num momento difícil, de desafios exigentes, a razão, a cultura e a arte devem ser também um refúgio para os combatentes. Um refúgio, um espaço para articular e expressar razões, emoções e sentimentos que mantêm alerta a nossa capacidade de rebelião”.
Veja-se, por exemplo, “SOS – Salvai as Nossas Almas” (2022), um dos vídeos que integra esta exposição, produzido no âmbito da Arco Lisboa, no qual o Panteão é convertido “no transmissor do sinal universal de socorro em código morse”, peça de enorme carga simbólica. A partir deste espaço físico e moral onde são recordados muitos do que “ajudaram a formar a alma do país” é emitida “uma aflitiva chamada de atenção” que, tal como a mensagem SOS, não admite nuances: “O problema é universal, a mensagem convoca-nos a todos”.
Ou veja-se ainda outra peça, “A Verdade é uma Desculpa” (2007), também um vídeo, em que o artista, invertendo o sentido da projeção cinematográfica, “devolve os exilados espanhóis da Guerra Civil” ao seu próprio país, num regresso a casa que “torna evidente, maior e mais sangrenta a crueldade do seu destino histórico e a sua fraternidade paralela com os exilados contemporâneos” que todos os dias cruzam o Mediterrâneo, aos milhares, muitos deles perdendo a vida.
Ao longo de quase cinco minutos, “os coxos andam para trás, as crianças bebem as lágrimas dos seus olhos, os guardas franceses recuperam um carro caído ou capotado e o desfiladeiro de Le Perthus restitui a Espanha espanhóis que nunca deixaram de o ser”.
Eugénio Ampudia diz-me que “como pessoa, como artista”, observa a realidade e tira conclusões que, de alguma forma, são sempre políticas e que expõe através da gramática e sintaxe da arte e da criação. “É, na sua natureza essencial, a arte, tal como a entendo, um sistema de comunicação que só completa o seu sentido com a participação de quem vem receber a mensagem”, sublinha, classificando por isso a arte com “um poderoso sistema de comunicação”.
A questão, refiro, é que a arte não chega, propriamente, ao que se define como “grande público”, muito menos aos mais desfavorecidos, aos mais pobres, perdendo por isso parte do seu poder. É uma ideia que o artista não subscreve integralmente: “Não creio que a arte chegue a pouca pessoas”. E explica o seu ponto de vista: “Como sistema de comunicação, abre-se, amplia-se e multiplica-se rapidamente. A entrada em museus tem até que ser restrita para evitar superlotação que piora a experiência de aproximação com a arte”.
Questão diferente, assinala, é “possuir” arte: “Numa sociedade comercializada, a arte como produto parece reservada às elites com dinheiro e poder, muitas vezes possuir arte é outro sinal do que as elites têm para realçar a sua situação privilegiada”.
Segundo o curador, André de Quiroga, “entende-se, cada vez mais, a pertinência da reflexão, pesquisa e produção artística, nunca desligada do ativismo de Eugénio Ampudia, que não pode deixar de tocar quem se interroga sobre o destino de uma sociedade acossada, por dentro e por fora”. Revelando que o nome da exposição “remete para memórias pré-covid”, quando numa das visitas regulares do casal Ampudia a Lisboa foram delineados ali vários dos projetos que hoje integram esta mostra, incluindo a videoinstala- ção que lhe dá o nome, embora não conste do núcleo de obras selecionadas”.
A sua “conexão lusa” até bem comprovada em vídeos e fotografias das séries “Onde Dormir”, mas também dos “Concertos”, que criou em Barcelona e em Lisboa, ou da já referida peça “SOS – Salvai as Nossas Almas”. Todas elas, acrescenta André de Quiroga, “promovem a reflexão sobre lugares, públicos e privados e institucionais e a forma como nos relacionamos com eles, e acima de tudo a necessidade de novos modelos para o desenvolvimento de uma sociedade pós-humanista”
Não é de hoje a relação entre curador e artista. Cruzaram-se aquando da Trienal do Alentejo, organizada por André de Quiroga, que trouxe à região alguns dos mais significativos nomes da cena artística contemporânea e cuja última edição ocorreu em 2014. “Foi precisamente na Trienal que tomei contacto com o mundo da arte portuguesa”, lembra Eugénio Ampudia, referindo que a presença do seu trabalho em Portugal não se limitou a exposições, também à criação artística.
Além da peça no Panteão, a exposição agora patente em Évora é marcada pela apresentação de dois novos trabalhos feitos em Portugal. Um deles chama-se “Concerto para Plantas”, surge na sequência do “Concerto para o Bioceno”, gravado em Barcelona, e levou um trio de cordas para a Estufa Fria, “residência permanente dos seres vegetais”. Aí foi gravado o tema “Festival”, de Pedro de Castro, compositor e acompanhante habitual de grandes nomes do fado, num “tributo à capacidade regenerativa e criadora do planeta, e reconhecimento das pos- sibilidades de coexistência com a humanidade”.
Também em estreia, “Biblioteca Rebelde” é uma instalação cinética em que 14 livros deslizam para a frente no plano horizontal e depois recuam, fazendo-o com “uma cadência moderada, mas contínua, procurando o melhor efeito estético possível a partir deste movimento permanente”. Da seleção de títulos, publicados nos séculos XIX e XX, incluem-se livros sobre o Alentejo, selecionados a partir da biblioteca da família Eugénio de Almeida, com enfoque na cidade de Évora e em autores eborenses/alentejanos ou com ligação à cidade ou ao Alentejo.
“É uma obra inédita, criada para esta ocasião e local”, conta Eugénio Ampudia, explicando que esta biblioteca “é alimentada pela cultura da região, por volumes que refletem a história do Alentejo, que recolhem os episódios mais relevantes na formação da identidade das gentes que a a habitam”. Desta forma, remata, “a peça torna-se uma mensagem que é ao mesmo tempo local e universal. Uma mensagem que não é neutra”.
A ARTE DE TRANSFORMAR
Quem o diz é Eugénio Ampudia: “Sem abrir mão dela, a arte deve sempre ir além da pura experiência estética. Deve pro- vocar emoções e reflexões que ajudem a compreender melhor o mundo, que encorajem a rebelião civilizada e culta”. Entendida desta forma, será tarefa dos artistas e das instituições “facilitar a aproximação da arte a territórios despovoados e envelhecidos”. Por isso, defende que a arte “pode revitalizar o património cultural, neste caso do Alentejo, pode ajudar a manter viva a identidade local, transformar o espaço público, tornar-se numa ferra- menta de ligação num local distante do centro do debate público”.
“ABRIGO DE COMBATENTES”
EUGÉNIO AMPUDIA, COM CURADORIA DE ANDRÉ DE QUIROGA FÓRUM EUGÉNIO DE ALMEIDA, ÉVORA, ATÉ MARÇO DE 2025