Quadro da administração pública, N. R. cumpriu dois anos de veneralato na Além-Tejo, loja da maçonaria regular que celebra três décadas de atividade. “Nascemos, crescemos, tivemos e temos as nossas dores de crescimento, saímos de casa, amadurecemos, voltámos e reconstruímos a nossa casa, tudo com vagar, sem nunca perder as nossas referências, valores e identidade”, diz N. R., em entrevista exclusiva à Alentejo Ilustrado.
Ao longo deste percurso, garante, a Além-Tejo tem contribuído não apenas para o aperfeiçoamento individual dos seus membros, mas também para a comunidade local. “Em 30 anos, transformámos muitos homens imperfeitos em homens bons, transformámos muitos homens bons em homens melhores e transformámos homens excecionais em homens humildes”, sublinha.
Quem são os membros desta loja?
Os membros desta loja são todos aqueles que foram iniciados na maçonaria regular e que por viverem, trabalharem ou por terem alguma ligação à cidade/região, reúnem regularmente no nosso templo localizado em Évora. Temos obreiros de diferentes nacionalidades, religiões e credos, profissões e estratos sociais, com uma forte vertente espiritual, filosófica e humanista que se manifesta através de valores como a defesa da dignidade humana, a emancipação individual e social, e a busca por uma sociedade mais justa e democrática. Os nossos princípios centrais incluem liberdade, igualdade, fraternidade, que se traduzem em tolerância, respeito mútuo e solidariedade, além de valores como justiça, verdade, honra e progresso. Quem está a ler esta entrevista, muito provavelmente já privou sem saber com um obreiro desta loja, basta pensar nas pessoas que conhece que pratiquem consistentemente estes valores.
Porque se chama uma loja?
Maçonicamente falando, chamam-se assim porque o termo loja (em inglês, lodge) designa, na sua origem, um alojamento ou abrigo para os trabalhadores das guildas medievais de pedreiros, que eram a base da maçonaria aquando da construção das catedrais e de grandes edifícios, onde o conhecimento era guardado em segurança e partilhado em função do grau e das responsabilidades de cada um. As reuniões maçónicas são simbolicamente um estaleiro de obras e a loja vai muito além do abrigo físico onde os obreiros se reúnem (denominado de templo), ela é o resultado de um conjunto de valores e de uma força espiritual coletiva que surge da união das energias mentais, emocionais e físicas de um grupo de pessoas reunidas, a que denominamos egrégora.
E o que fazem, em concreto?
Essencialmente trabalhamos a pedra bruta com vista à construção do nosso templo interior. Ainda que o façamos em conjunto e de forma ritualística nas referidas reuniões, trata-se essencialmente de um trabalho individual de aperfeiçoamento moral e iniciático, procurando combater os nossos vícios e defeitos e cultivar as nossas virtudes e, para tal, é fundamental o autoconhecimento e o estudo. Se nos aperfeiçoarmos e evoluirmos enquanto indivíduos, podemos ajudar e inspirar os que estão à nossa volta no dia-a-dia e contribuir para a construção de uma melhor sociedade, pois seremos certamente melhores pais, melhores filhos, melhores maridos, melhores vizinhos, melhores patrões, melhores empregados, etc.
A igreja católica não costuma defender os maçons, mas vocês reúnem com uma “Bíblia” aberta, porquê?
Reunirmos com a “Bíblia” aberta no Evangelho de São João, mas também temos o “Alcorão” e a “Torá”, se estiverem presentes obreiros das diferentes religiões, como costuma acontecer muitas vezes na nossa loja e noutras, revela que, bem acima de qualquer igreja, enquanto instituição, bem acima de qualquer dogma, existe um ser criador, Deus ou o Grande Arquiteto do Universo, como lhe quisermos chamar. E revela também tolerância e respeito pelo credo de cada um. Nas nossas reuniões, o livro sagrado aberto, seja ele qual for, é o símbolo da nossa fé e os nossos trabalhos pautam-se pela liberdade de ensinamento, humildade, respeito e tolerância, sem dogmas. E sobretudo, nunca falamos de religião.
Quem pode entrar na maçonaria?
Na nossa obediência maçónica, a GLRP/ GLLP, podem entrar todos aqueles que, sendo homens livres e de bons costumes, tenham fé e acreditem numa entidade divina, o Grande Arquiteto do Universo. Estes são os requisitos mínimos, mas quem for proposto para entrar na maçonaria ou solicitar por iniciativa própria a sua entrada, terá de cumprir um conjunto de outros requisitos que serão rigorosamente analisados e verificados antes de se proceder à sua entrada (conduta pessoal, familiar e profissional, bem como eventuais contributos na comunidade e sociedade).
São politicamente de esquerda ou de direita?
Respeitamos as diferenças e somos tolerantes. Temos obreiros de distintos quadrantes políticos, mas não discutimos política partidária nas nossas reuniões, ou qualquer tema que nos possa dividir, criar desarmonia e não ser construtivo. Contudo, a ciência política deve ser alvo do nosso estudo e reflexão e também debate nas reuniões. Num mundo cada vez mais complexo, exigente e em permanente e rápida evolução, é redutor dividir a política em esquerda e direita e há que não esquecer qual o seu propósito. Convém relembrar que a política é a ciência e a arte de governar uma sociedade ou comunidade, envolvendo a tomada de decisões para o bem público, a organização da vida em comum e a resolução pacífica de conflitos sociais. Tudo o que for diferente disto, não está em consonância com os valores que defendemos e pelos quais nos devemos pautar enquanto maçons.
Porque se escondem?
Garantidamente que não nos escondemos, pois nós acordamos, saímos de casa e vamos trabalhar como toda a gente, e estamos expostos a inúmeras pessoas no nosso dia-a-dia. Como todas as pessoas, também nós temos o nosso lar, o nosso porto de abrigo, onde podemos tranquilamente e em segurança desenvolver o trabalho a que nos propomos. O nosso trabalho não se faz só em “casa” e na maioria do tempo estamos bem à vista de todos a continuar a obra que iniciámos dentro do nosso templo apenas o fazemos de forma discreta, paciente e com perseverança.
E o avental que usam para que serve?
O avental é um símbolo do trabalho e do progresso espiritual, como que um distintivo de honra que identifica o maçom e o seu grau dentro da ordem maçónica. Tal como os antigos pedreiros usavam o avental como proteção enquanto trabalhavam a pedra, o avental que usamos serve para proteger a alma, dos nossos próprios defeitos e imperfeições, das agressões morais, dos extremismos e intolerâncias e da pobreza de espírito, representando a pureza de carácter e lembrando a obrigação de trabalhar na construção do nosso templo interior e também da sociedade.
O que têm feito em Évora nestes 30 anos?
De forma muito resumida… nascemos, crescemos, tivemos e temos as nossas dores de crescimento, saímos de casa, amadurecemos, voltámos e reconstruímos a nossa casa, tudo com vagar, sem nunca perder as nossas referências, valores e identidade! Em 30 anos, transformámos muitos homens imperfeitos em homens bons, transformámos muitos homens bons em homens melhores e transformámos homens excecionais em homens humildes. Cuidamos dos nossos irmãos quando precisam, zelamos pelo bem-estar das suas famílias, participamos em eventos cívicos, apoiamos causas sociais, promovemos os nossos valores de fraternidade e caridade em campanhas de angariação de fundos e programas de voluntariado. Sendo o nosso foco o estudo, o autoconhecimento e desenvolvimento pessoal dos nossos obreiros, com impacto indireto nas suas famílias, amigos e conhecidos, ampliamos assim exponencialmente o nosso grau de atuação na comunidade e na sociedade.
Podem ser considerados como um género de seita?
Muito pelo contrário! Se algo carateriza a nossa ordem, é a total liberdade de pensamento e individual de cada membro. Essa independência é mantida quer no interior, quer no exterior das lojas. E para cada um de nós, o lema é que primeiro está a família, a profissão e as leis do estado, às quais todos devemos nos submeter, sem exceção. A expressão que somos homens livres e de bons costumes expressa bem isso.
Entre a sombra da Inquisição e a abertura contemporânea
No nosso país, a introdução da maçonaria data do primeiro quarto do século XVIII quando comerciantes de origem inglesa fundam uma loja em Lisboa. Que ficou anotada nos registos da Inquisição portuguesa enquanto Loja dos Hereges Mercantes. Porém, o Papa Clemente XII vem baralhar as coisas, com a sua bula “In Eminenti Apostolatus Speculapapal”, datada de abril de 1738, condenando a maçonaria, abrindo-se um conflito retórico que continua três séculos depois a assombrar em países como a Itália, França, Espanha e claro, Portugal.
Uma segunda loja, a Casa Real dos Pedreiros-Livres da Lusitânia, composta essencialmente por residentes irlandeses, e comerciantes, médicos, frades, entre outros, surgiu poucos anos depois. Destacando-se o húngaro Carlos Mardel, engenheiro militar que foi um dos grandes arquitetos da reconstrução de Lisboa no pós-terramoto de 1755.
O primeiro ataque direto contra os maçons, surge em 1743 quando a Loja de Coustos foi denunciada à Inquisição, e muitos dos seus membros foram presos, torturados e sentenciados. Esta severa ação levada a cabo pelo Santo Ofício foi eficaz, tendo abrandado nessa época o princípio da atividade maçónica em Portugal.
A entronização de D. José I, e sobretudo o governo do Marquês de Pombal, a partir da década de 50, traz estabilidade e flexibilidade à sociedade portuguesa da altura, o que permite à maçonaria ganhar coragem, registando-se a fundação de várias lojas, militares e civis, no país.
Contudo, em 1792 com o edital da Inquisição contra os “pedreiros-livres” e os “libertinos”, de novo é desmantelada toda a organização maçónica em Portugal. As perseguições que se seguiram levaram muitos maçons a serem presos, e impossibilitam o direito à reunião.
O século XIX marca a expansão da maçonaria, “onde a ideia de privilegiar a qualidade à quantidade dos seus membros sempre foi mantida”, explica M.P. um antigo grão-mestre alentejano. “Não seremos mais de dez mil ao todo em Portugal”, continua, “O mito de que isto é uma enorme teia de conluios, um polvo abrangendo o aparelho do Estado e interesses económicos ou políticos é um disparate absurdo. Serve apenas para vender jornais”.
Hoje, a maçonaria perdeu um pouco da sua aura misteriosa, porque está publicada um vasto conjunto de obras literárias desvendando os segredos maçónicos. Quem se interessar por isso pode ir a uma biblioteca ou livraria que, por certo, encontrará matéria para matar a sede de conhecimento sobre o assunto.
Em termos bibliográficos, a grande referência continua a ser a trilogia escrita por A. H. Oliveira Marques “História da Maçonaria em Portugal “(três volumes) na Editorial Presença, 1990. Sobre o Alentejo, especificamente, o livro de António Ventura “Maçonaria no Alto Alentejo (1821 – 1936)” faz um estudo sobre as lojas e triângulos da região durante a época descrita no título. Trata-se de um excelente trabalho de 360 páginas sobre esta organização na nossa região.











