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“Alentejo Ilustrado”. Tem a sua graça

Por aqui far-se-á jornalismo. Não é pouco, sendo até uma prática rara no contexto de histeria mediática e condicionalismos, sobretudo económicos, que a maior parte dos jornais enfrenta. Faremos jornalismo, atacando de frente os temas polémicos. “Alentejo Ilustrado” renasce como revista de periodicidade mensal, herdeira de uma longa história que remonta a fevereiro de 1905. Já lá vão 118 anos.

Luís Godinho (texto)

Isto de refazer o “Alentejo Ilustrado” tem a sua graça. Acredito que é o título mais adequado ao propósito que nos move, o de estarmos presentes em todas as regiões deste imenso Alentejo, onde naturalmente se inclui a diáspora. Ou seja, boa parte do mundo. Nas suas vidas passadas, como a seguir se explicará, “Alentejo Ilustrado” já teve sedes em Évora, em Lisboa, em Beja e em Santiago do Cacém. Só faltou mesmo o Alto Alentejo, mas a perfeição é difícil de alcançar.

Tem a sua graça isto de refazer o “Alentejo Ilustrado” com edição em papel, apostando num jornalismo de referência, imune à histeria mediática que se confunde com a das redes sociais. Se viu um qualquer assunto ser tratado no noticiário televisivo, o mais provável é que não o encontre nas páginas desta sua revista. Aqui também não se publicarão notas de imprensa, nem comunicados. Far-se-á jornalismo, atacando de frente os temas polémicos. E, sim, chama-se “Alentejo Ilustrado”, por vezes até lhe chamamos “O Alentejo Ilustrado”, e é uma revista. O que também tem a sua graça.

Foi a uma quarta-feira que pela primeira vez surgiu um título com este nome. Quarta-feira, 2 de fevereiro de 1905. Com redação e administração no número 17 da antiga Rua da Selaria, a atual 5 de Outubro, em Évora, o semanário independente, noticioso, literário e “charadístico” ostentava no cabeçalho o nome de António Maria Cabral como diretor e administrador.

Por essa altura, vejam lá se não tem a sua graça, havia em Évora jornais para todos os gostos. E leitores, claro. Já se publicava um diário, o “Notícias d’Évora”, de pendor monárquico. A que se juntava o “Manuelinho d’Évora”, com o seu “tipo de jornalismo romântico, noticioso e cultural”, na expressão do falecido jornalista José Frota, “O Distrito d’Évora”, que chegou a ser dirigido pelo Conde da Ervideira, “A Semana de Évora”, com uma matriz mais literária, em que colaborou gente como o Conde de Monsaraz, Bulhão Pato, Júlio Santos ou Alberto Pimenta, e “A Voz Pública”, fundada pelo tipógrafo Domingos da Silva, com o médico republicano Evaristo Cutileiro a assumir o cargo de diretor.

Eis então o novo jornal a apresentar-se “com a maior modéstia e despido de todas as tricas políticas, visando apenas tentar defender os interesses locais, noticiando tudo [o] que encontre digno de menção e de interesse público”.

Nas ilustrações das suas páginas comprometia-se a “apresentar as figuras” que mais se salientassem “pelos seus atos de benemerência ou em pró dos progressos da nossa terra, pois não é só na política e nos meios pecuniários que se encontram homens dignos de figurarem como beneméritos”. De forma algo paradoxal, a primeira ilustração é precisamente a de um desses homens, benemérito é certo, mas também representante máximo da política e dos “meios pecuniários”: Francisco Eduardo de Barahona Fragoso, falecido dias antes (a 25 de janeiro de 1905), e de que voltaremos a falar.

Desengane-se também quem pensa que as preocupações de ontem eram muito diferentes das de hoje. Algumas seriam, como a falta de um púcaro na Praça do Giraldo, “ou se estragou ou o roubaram”, o que obrigava os transeuntes a “colocarem a boca na torneira” sempre que tinham sede. Mas outras, como o vício do jogo, ainda por aí subsistem. Se hoje são as raspadinhas ou as apostas através da internet, em 1905 era a existência de três roletas na cidade de Évora que levava o redator de “O Alentejo Ilustrado” a escrever ao Governador Civil do distrito: “Hoje que se vê por essas ruas trabalhadores e operários quasi mendigando, por falta de trabalho, apresenta-se-lhes para consolação três roletas”.

PAISAGENS QUE SE PERDEM

Tendo esta primeira série durado poucas semanas, não mais do que 14, “Alentejo Ilustrado” reapareceu na terça-feira, 15 de setembro de 1931, com redação e administração em Lisboa, no número 40-B da Rua do Sol a Santa Catarina. A tipografia ficava na casa ao lado. Propriedade do Grupo Alentejano de Publicidade, a revista (era assim que se apresentava) foi para as bancas com um diretor literário (Manuel Subtil), outro artístico (Denis Fragoso, desenhador e cartoonista nascido em Nisa e que trabalhou em jornais como o “Diário de Notícias” ou “O Século”) e um secretário, hoje diríamos chefe, de redação (José de Almeida).

Nascido em Vale do Peso (concelho do Crato), professor e educador com vasta obra publicada, Manuel Subtil garantia que o “Alentejo Ilustrado” se apresentava com um “programa inteiramente regionalista” e apostado em juntar a sua voz “à de tantas outras vozes que já felizmente soam, aqui e além, em prol do levantamento da mais típica, da mais extensa, mas também da mais caluniada província do Continente português”.

Os bonitos propósitos enunciados por “notáveis” alentejanos há muito radicados em Lisboa não passaram disso mesmo, de propósitos, uma vez que deste quinzenário apenas se publicou um número, abrangendo temáticas dos distritos de Portalegre, Évora e Beja, entre as quais um texto, “No termo de Castro”, de Manuel Brito Camacho, figura de proa dos movimentos republicanos.

Não deixa de ter a sua graça que, uma vez mais, os temas dessa época se possam cruzar com a agenda informativa destes dias que vivemos. Quando a paisagem muda e se cobre de olivais e amendoais, lá nos levantamos em defesa do património paisagístico alentejano que se está a perder. De novidade temos apenas (talvez não seja pouco) os olivais e os amendoais intensivos, não a mudança da paisagem.

Leia-se, por exemplo, esta passagem do texto de J. Mendes do Amaral publicado nesse primeiro e único número de “Alentejo Ilustrado”, em 1931: “Percorrem-se hoje os distritos de Portalegre, Évora e Beja, na visão vertiginosa que permite o transporte automóvel, e procura-se debalde a lendária charneca, o imenso esteval de tom acastanhado, onde o verde vegetal não tinha vénia de aparecer, sob a ardência tirânica do sol, de mãos dadas com a escassez das reservas aquosas do subsolo”.

Em plena Campanha do Trigo, lançada pelo Estado Novo, a “lendária charneca” e o “imenso esteval” começavam a ser coisa do passado. “Agora são as dilatadas ondulações, que nunca chegam a ser planície perfeita, cobertas pela cariciosa verdura das searas nascentes no inverno, pela movediça alfombra dos trigais maduros no verão, ou ainda, no desalento do outono, as restolhices calvas e uniformes, atestando a necessidade de um repouso letárgico em paga do esforço criador de milhares de toneladas de pão”, escrevia J. Mendes do Amaral, um alcacerense que, depois da República, chegou a ministro do Comércio tendo ocupado, já na ditadura salazarista, posições de relevo na estrutura administrativa do Estado.

E como não há uma, sem duas, também esta série publicava um perfil de Francisco Eduardo de Barahona Fragoso, assinado pelo cónego António A. da Natividade: “Foi ele que, impulsionado por uma grande coragem, mandou concluir o majestoso Teatro Garcia de Resende, que de há muito tinha somente as paredes levantadas”. E que, já agora, também mandou edificar o Asilo Ramalho Barahona e restaurar a Igreja de São Francisco, numa altura em que esta apresentava “iminente ruína”, além de outras obras beneméritas.

“INSISTIR, INSISTIR SEMPRE”

De todas as séries de “Alentejo Ilustrado”, a mais consistente foi a terceira, iniciada em agosto de 1959 por iniciativa de Amélia d’Ayres Lança Pereira e com sede no número 11 da Rua Conde da Boavista, em Beja, bem perto do Museu. Licenciada em Histórico-Filosóficas e professora no Liceu, Amélia era casada com o jornalista e escritor M. de Melo Garrido, que assumiu a direção da revista. O redator-secretário era José Moedas, figura de referência no jornalismo alentejano e pai do atual presidente da Câmara de Lisboa.

A “missão” da nova publicação era explicada em editorial: “Servir, com dedicação e persistência, a região de que tomou o nome, divulgando os seus valores e as suas belezas, tornando mais conhecidos os seus problemas de maior importância ou atualidade e apoiando as suas mais veementes e legítimas pretensões”.

Com periodicidade mensal, chegou a ter redatores em Évora (Valentim Alferes), em Lisboa (Vasco de Freitas Rodrigues) e no Algarve (Mário Zambujal), publicando entrevistas com figuras destacadas da cultura nacional, como Urbano Tavares Rodrigues, Manuel da Fonseca, Hernâni Cidade, Fernando Namora (que também aí publicou um artigo) ou o pintor Álvaro Fialho. Outro dos colaboradores foi o escritor Antunes da Silva.

“Afora os distritos de Lisboa, Porto, Braga e Coimbra”, escrevia M. de Melo Garrido, no número oito da revista, “o Alentejo é, no Continente, a única região provinciana onde se publicam, desde há muito, jornais diários”. Na verdade, e isso não deixa de ter graça, eram três os diários editados no Alentejo, dois em Évora (o já aqui citado “Notícias d’Évora”, à época dirigido por Joaquim dos Santos Reis, e a “Democracia do Sul”, liderada pelo advogado João Leitão da Silva) e um outro em Beja (o “Diário do Alentejo”, que anos depois haveria de ser dirigido pela dupla M. de Melo Garrido/José Moedas). 

Semanários eram muitos e variados, de “A Defesa” ao “Brados do Alentejo”, à “Planície” e ao “Linhas d’Elvas”, cujas publicações se mantêm, a outros entretanto desaparecidos, como “A Rabeca”, o “Ecos de Estremoz” ou “A Voz Portalegrense”. 

Foi no “Alentejo Ilustrado”, por exemplo, que Raul Rego (político, jornalista e futuro diretor da “República”) publicou duas cartas, até então inéditas, dirigidas por Fialho de Almeida ao também escritor Manuel Ribeiro, filho de um sapateiro de Albernoa (Beja) e que foi um dos autores mais lidos no Portugal de há 100 anos.

Ao número 23 é publicada uma curiosa coluna intitulada “Diálogo na Redação”, resultado de uma conversa entre as duas figuras de proa da revista: M. de Melo Garrido e José Moedas. Diz o primeiro: “Eu sei que o segredo da sobrevivência jornalística é insistir, insistir sempre”. Ou insistiu pouco, ou ter-se-á cansado de tanta insistência. A verdade é que esse foi mesmo o último número da revista. Desta vez, tem a sua graça afirmá-lo, não nos faltará determinação para insistir.

Foi preciso esperar mais 40 anos para que “Alentejo Ilustrado” voltasse às bancas, também sob a forma de revista mensal. Propriedade de Aurélio Carlos Moreira, e com sede em São Domingos (Santiago do Cacém), a revista surgiu associada à redação da então Voz do Alentejo (emissora da Rádio Renascença), onde pontificavam jornalistas como Luís Aresta, Carlos Coutinho, Nuno Figueira ou Carla Alexandre.

“Chegamos, assim, à família da imprensa alentejana, para, sobretudo através da imagem, e num terreno longínquo da polémica e do confronto, deixar o registo das grandes questões que se levantam hoje no Alentejo, mas também (…) a novidade, a curiosidade, a personalidade em foco, a informação cultural”, escrevia o diretor no número inaugural. Nos seguintes surgiram, entre outras rubricas, entrevistas com alentejanos famosos. Um deles, o encenador Filipe la Féria, fotografado à porta da casa de família, na Aldeia [hoje Vila] Nova de São Bento, descrevia a sociedade alentejana como “rica humanamente e muito trágica”, seja lá o que isso que quer dizer.

AQUI CHEGADOS

Aqui chegados, há alguns agradecimentos a fazer. Em primeiro lugar a todos os leitores, e em particular aos assinantes, sem os quais nada disto faria sentido. Depois a toda a equipa redatorial, cujos nomes constam da ficha técnica, sem a qual nada disto seria possível. Finalmente, mas não menos importante, a todos aqueles que nos apoiam. Numa época de vendedores de banha da cobra, de um jornalismo entrincheirado entre bons (os nossos) e maus (os outros), é reconfortante constatar que há quem saiba distinguir o certo do errado, reconhecendo o papel crucial de uma imprensa livre e independente na construção do nosso futuro coletivo. E terá também a sua graça somar assinantes, colaboradores e anunciantes a este “Alentejo Ilustrado” que agora inicia o seu caminho. Sejam todos bem-vindos.

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