Alexandre de Barahona: A história de um AVC na primeira pessoa

No final de setembro de 2024, o diretor-adjunto da Alentejo Ilustrado, Alexandre de Barahona, sofreu um acidente vascular cerebral. Esta é a primeira parte de um relato, escrito na primeira pessoa, de quem se viu entre a vida e a morte, sem aviso prévio. Alexandre de Barahona (texto) e Yuco (ilustração)

Tudo tem um lado bom. Até aquilo que é mau: porque pode sempre ser pior. Todas as doenças ilustram momentos de vida espalhando angústia em redor, e isolando o paciente num sofrimento à margem da compreensão racional do dia-a-dia.

Esta história não é um relato de sofrimento, mas sim de um caminho subindo uma rampa desenhada em gincana, deambulando entre a esperança de uma reabilitação total e a realidade futura que ninguém conhece de antemão. A tinta que aqui escreve é o dantesco esforço, que só quem passa pela experiência poderá compreender.

Começa a uma sexta-feira, igual a tantas outras, dia 27 de setembro perto das 20h00, quando entremeava o final da tarde com o renascer da noite. Após passar pela mercearia para comprar legumes e trocar umas larachas com o Pedro, atrás da caixa registadora, peguei no automóvel para ir buscar a minha filha ao treino de voleibol. Tudo normal. Preparava-se mais um fim de semana tranquilo, em família.

Chegando de regresso a casa, ao estacionar o carro entre outros parados na rua, reparei que o veículo não reagia como seria normal, algo ríspido e aos solavancos, diria eu. Bem estacionado desliguei a ignição e joguei a mão esquerda para abrir a porta. Mas o braço surpreendentemente ficou a meio caminho.

Sem hesitar, o braço direito substitui-o com êxito na função e, uma vez a porta aberta, rodei colocando as pernas de fora. Foi nesse momento que percebi não ter força na perna esquerda. Olhei para o meu braço esquerdo e ele pendia junto ao corpo perfazendo um arco até aos dedos da mão, bem juntos e cerrados.

Não era o automóvel que tivera um problema: era eu. Tão simples e rápido como isto. Cognitivamente bem, receando a evidência percebi logo do que se tratava, era um AVC. Os acidentes vasculares cerebrais (AVC) são a primeira causa de morte em Portugal. Em cada hora que passa, ocorrem três AVC em Portugal. Um deles é fatal. Naquele minuto, calhara-me a mim.

Em menos de sete minutos, as paredes das casas em redor foram pintadas pelos reflexos azuis da luz na ambulância dos bombeiros de Évora. Era um casal, cada um com um forte sotaque alentejano, de fora da cidade. Chegaram depressa porque estavam de prevenção, ou seja, à espera. No registo interno do veículo estavam numeradas as quase 400 ocorrências desse dia 27 de setembro. São apenas quatro os veículos disponíveis, para a cidade e arredores. Tive sorte.

Ambulância a rolar e um quarto de hora depois dava entrada nas urgências do Hospital do Espírito Santo em Évora. Umas horas e vários exames depois, um simpático médico de serviço anuncia-me que, na opinião dele, eu deveria ter tido um início de AVC, perguntando-me de seguida se quero ter alta e ir para casa ou ser internado. “O mais difícil já eu fiz, que foi passar na triagem das urgências”, respondi. “Já que cá estou dentro, fico. Para se saber ao certo o que me aconteceu”. E assim foi, fui internado e admitido às 4h00 da manhã na Unidade de AVC (UVAC).

A UAVC é um departamento à parte, no Hospital do Espírito Santo, de Évora. Tem espaços vários, mas todos direcionados para um só: uma ampla sala reagrupando os casos agudos de AVC. Um local inundado pela claridade do sol, através de duas grandes janelas, e onde na parede opos- ta tronam dois aparelhos de ar condicionado, para temperar o ambiente.

A enfermeira Maria João, uma lingrinhas que exorta o poder da água perante os restantes líquidos que podemos ingerir, e a Marta, enfermeira “fofinha” como ela gosta de se definir, contrapondo os seus 90 quilos aos 45 da colega. Ambas fazem a melhor equipa da UAVC.

Quando iniciam o serviço de oito horas na unidade, instalam-se a competência, o profissionalismo e o alvoroço. Não são apenas experientes enfermeiras cuidando com extremo profissionalismo dos doentes, como também para regozijo dos mesmos, são duas fabulosas comediantes.

As seis camas colocadas por metade em cada parede, ladeando as janelas e os aparelhos de ar condicionado, abrigam continuamente os pacientes, cujo único ponto em comum foi o de terem recentemente sofrido um acidente vascular cerebral.

Esta designação é assertiva, pois ninguém sofre um AVC porque sim, surge repentinamente quando menos se espera, faça-se o que se fizer. E tal como os acidentes de automóvel não acontecem sempre aos outros, um AVC também não. Pode muito bem vir a acontecer-lhe a si. Daqui a 10 minutos ou daqui a 10 anos. As origens são diversas formando um ‘cocktail’ de hipertensão, diabetes, stress, etc. Não avisa, dá-se.

O lado positivo destes doentes internados no hospital, é que, por motivos casuais, ao invés de terem sido depositados na morgue, foram ali parar. Sobreviveram.

No amplo quarto onde pernoitam os seis sobreviventes ao AVC, as duas enfermeiras e outras tantas auxiliares manobram com uma ligeireza e assertividade pouco vistas. Seja qual for a equipa que se reveza a cada oito horas, o serviço ali parece um relógio suíço, bem afinado. Sem exagero. Substituindo o cuco, a todas as horas certas as braçadeiras enchem anunciando as tensões arteriais de cada paciente.

Sentadas à secretária no centro da sala, todas as anotações são feitas minuciosamente, tal como o rodopio incessante para os comprimidos, injeções, análise da glicemia, entre outros repetidos cuidados. Até durante a noite, as enfermeiras e auxiliares destacadas, ali permanecem atentas e amparando a cada ruído estranho. E sim, estou a falar do Serviço Nacional de Saúde (SNS), nascido contra tudo e todos por decreto-lei de António Arnaut e que desde então salva a vida dos portugueses, sem lhes pedir nada em troca. Algo que só é valorizado quando dele precisamos.

Porque são pessoas antes de estarem doentes, os que acorrem ao SNS, refiro o senhor João, na casa dos 60, de expoente barriga digna de um bon vivant alentejano, rindo-se de tudo o que é escutado, lançando gargalhadas, ajudando à festa. O riso é uma secular receita humana, para evacuar os medos.

Quando nos anos 90 calcorreei, em reportagem, a Bósnia Herzegovina em plena e atroz guerra civil, aprendi que as graçolas, o rir alto e bom som, serviam para que as pessoas acreditassem no amanhã, apesar da morte e do sofrimento presentes. Quando a auxiliar Edite o questiona sobre o que quer comer ao lanche, o senhor João responde de olhinhos esperançosos que quer uma bifana e uma cerveja. E é com um ar mais animado, que tritura o seu papo-seco somente com um pouco de manteiga. “Há coisas piores”, confidencia, entre duas dentadas.

Na cama ao lado, junto à janela, reside Rajesh Balu, apelido que lhe dei igual ao urso do “Livro da Selva”, selva situada justamente na Índia, de onde o homem que trabalhava na cozinha de um fastfood eborense migrou até nós. O AVC prejudicou-lhe a fala, além dos membros, e é com acrescida dificuldade que comunica com os enfermeiros num misto de inglês e português.

Noutra cama distinta paciente, com a dona Antónia não tugindo nem mexendo, com os seus 80 anos e uma sonda enfiada pelo nariz, único meio para ser alimentada, através de uma enorme seringa por onde se lhe empurra a comida empapada, nariz dentro, esófago dentro, estômago adentro. Porque o AVC, além de outras sequelas, danificou-lhe os músculos de deglutição, retirando a capacidade de mastigar e de engolir.

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De manhã fecham as cortinas para lhe darem um banho completo. Feito, amparam-na levando-a a sentar-se num cadeirão azul, passando assim, ali, os santos dias a fio. “Como se sente princesa? Está melhor hoje querida!”, repetem em alta voz, sempre que a penteiam, ou passam um disco de algodão embebido para lhe despegar a pálpebra do olho esquerdo que teima em continuar fechado, e lhe mudam o soro. Velha, como imaginamos serem as velhas em fim de percurso.

Estamos aqui, estamos ali, cogito em silêncio para mim próprio.

Uma tarde recebeu a visita da neta, era a Mariana Mortágua que a agarrou aos beijos. Beijando docente e com delicadeza acariciando as mãos enquanto jorrava palavras sentidas. Não, na realidade não era a deputada bloquista, mas em tudo lhe era igual, a cara, trejeitos e cabelo incluindo o tipo de roupa que usava. Noutro dia vinha visitá-la a filha, que nada tinha a ver com a neta Mortágua, real ou imaginária. A velhota era quem menos se apercebia das coisas ao seu redor e comparativamente quem tinha mais pessoas a visitá-la.

Eu, esticado por entre livros na cama, dava por mim entregue às minhas leituras quando despertava para um burburinho em surdina, que reinava na ampla sala da unidade dos AVC. Estávamos na hora da visita, onde à vez por cada cama, alguém de pé acalentava o enfermo a seu lado. O livro que tinha em mãos contava-me uma história, mas a minha, era aquela naquele momento, sozinho, envolto em livros na cama e tanta gente em volta sem olhar para mim.

Ninguém mais ali lia, todos choravam, menos eu. Claro que também tive diariamente visitas, mas os horários alternavam, evitando inundar o quarto de gente entre beijos e lágrimas.

Lágrimas pela tomada gradual de consciência, dos danos em que resultaram os acidentes vasculares cerebrais em cada pessoa ali acamada. Sobejamente conhecidos são a perda de capacidade dos membros inferiores e superiores, do lado oposto onde ocorreu o AVC. Nestes casos, os pacientes preservam normalmente todas as suas faculdades cognitivas.

Se tal ocorre na zona frontal do cérebro, o azar foi radical, podendo “perder o juízo”, perdoem-me a expressão. Podemos ficar com os músculos de deglutição inativos, só podendo comer papas e até a água deve ser adulterada com um pó espessante. A cara pode apresentar a boca e faces descaídas, tão características do AVC. Ou sair, por milagre, quase indemne a tudo isto. Enfim, a cada um sua sina.

A enfermeira de cabelo arruivado, um corte à Beatriz Costa, perscrutava os doentes por detrás de uns redondos óculos, dos quais suspendia uma corrente de plástico multicolor. A outra mais franzina, digna de uma atriz italiana, preenchia o silêncio com uma voz altiva, alegrando o tempo que leva a dar injeções, ou a alimentar um acamado sofrendo de disfagia.

Àquele duo nada escapava, nem a qualquer enfermeira ou auxiliar que trabalhe na UAVC. Todas são extremamente profissionais e atenciosas. Que o diga, quem por lá passou, que naturalmente não se deseja a ninguém. A Unidade foi criada pela Dra. Luísa Rebocho, tendo agora as médicas Sílvia Lourenço e Ana Revez como clínicas responsáveis. Às 8h00 da manhã já estão a visitar cada paciente, cama após cama. Sendo usual que pelas 20h00, já de noite, ainda por lá deambulem.

A meu lado outra velhota, de 59 anos, mas aparentando ter mais uns 15, chama em permanência pelo marido desde que acorda. ”Ele deve estar lá em baixo”, repete. “São 7h00 da manhã princesa”, responde a enfermeira que prepara a troca de turno, explicando-lhe que o horário das visitas é às 15h30, vai ter de esperar!

E o hábito instala-se. Meio dia passado, com sensação de ter sido dia e meio, lá soam as visitas. Parcas, porque ali apenas uma pessoa pode subir por cada oportunidade. Entre elas assoma um senhor patusco de uns 60 e tal anos, de óculos no nariz, típica boina e bigode farto, mostra os dentes sorrindo à esposa. “Olá periquita”, atira-lhe em bom som, trocando um beijo digno da película do Titanic.

Acontece que, quando um familiar a visita, aquela senhora não fala: chora e chora lavando-se em lágrimas. O idoso ali fica, vendo-a chorar. Lembra-se a dado momento de ligar à cunhada, contudo pelo telefone a mulher continua a chorar baba e ranho. Como chora, as lágrimas da velha Mariana dariam para encher o Alqueva em tempos de seca.

Uns dias antes, ele trouxera-lhe um bolo dentro de um papel castanho, que ela depressa esconde ao lado do tabuleiro, com o jantar em cima da cama. Enquanto jantava ia partindo pe- dacinhos de bolo de amêndoa, intercalando-os a cada garfada de pescada cozida ou feijão-verde. Rapidamente a enfermeira descobriu a brincadeira, saltando na sua direcção de dedo em riste.

A cada “não!” – que esta lhe ordenava aproximando-se, a idosa enfiava à pressa um bocado de bolo na boca, apressando-se a despachá-lo, apesar de estar sem dentes, pois esquecera-se a dentadura em casa. “Assim cabe mais bolo”, como um esquilo armazena avelãs nas bochechas, assim fez a Marianita quando a enfermeira lhe ralhou. Na UAVC tudo funciona como uma máquina bem oleada.

A terapeuta da fala, tem a voz mais sexy de todo o hospital, a fisioterapeuta não conseguiria correr atrás de mim, caso eu conseguisse correr. No entanto, durante os exercícios tem um olho vivo ao qual nenhum estrebuchar ou hesitação escapam. Não há forma de lhe esconder qualquer desequilíbrio na passada, a sua mão encosta logo amparando-nos.

A médica diretora do serviço tem (coisa rara entre médicos quando dialogam com os pacientes) um sorriso franco e aberto igual ao da Kamala Harris. A própria o afirma.

Enfim, não fosse tão grave sofrer um AVC e até pareceria que fora uma feliz aventura. Essa sensação deve-se à excelência daquela unidade do Hospital de Évora. De estranhar com tanto mal que do Hospital se diz. Tenho em crer que isso se deve à fase das urgências, onde diariamente se acumulam pessoas.

Esta história não termina aqui. Sofrido o acidente e socorrido na fase aguda, segue-se a recuperação das deficiências que atingem os pacientes. É o encontro com os “anjos da guarda” e essa é outra história, narrada nas páginas da nos- sa próxima edição, em fevereiro. Até lá, ela está a ser vivida, para lhe contar na primeira pessoa.

É uma história simples, que se vai inevitavelmente sucedendo e sobre as quais se evita falar. Esperemos que a possa ter lido. Significa que o paciente sobreviveu. Desta vez.

Se os défices causados pelos AVCs são distintos e específicos em cada paciente, também a possibilidade de recuperar difere, segundo cada um. E é um jogo de cabra-cega, porque se desconhece se a recuperação será total ou a 70%, ou 50%, apesar de todos os esforços que sejam feitos.

No meu caso jamais coloquei em dúvida que recuperaria totalmente, mas ainda vou a meio do processo. E confesso que mantenho a minha firmeza, ainda que por vezes me assolem pensamentos: será que voltarei a pilotar a minha moto? Que se lixe, já fiz as asneiras suficientes nela e sobrevivi. Mas… poderei voltar a conduzir um automóvel? Talvez, acredito que sim.

Quando, no fundo, o maior receio é o de não recuperar totalmente a marcha, para simplesmente viajar e passear com os meus filhos. Como antes. E abraçar a namorada com os dois braços, num enlace de ternura. Por outras palavras, ficar um aleijadinho. Refletindo nisto, somos todas uns aleijados em perspetiva. Sobretudo quando intolerantes, des- viamos o olhar dos que nos são diferentes.

A história da recuperação, é outra. Que está a ser escrita no dia-a-dia e no papel, para se seguir a esta.

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