Um ano. A 27 deste mês de setembro completará um ano sobre o momento em que sofri o acidente vascular cerebral (AVC). Após seis meses de internamento, é natural que, de volta à vida normal, esta nos pareça estranha. Porque dela fomos extirpados sem aviso prévio, como se uma mão in- visível nos tivesse puxado pela gola do casaco, separando-nos da vida que conhecemos e tínhamos, pregando-nos a uma cama no hospital. E passados meses, quando a ela regressamos – à dita vida nor- mal – afinal chegamos com as deficiências físicas (ou outras) que não possuíamos antes. Aceitemo-lo ou não, não somos os mesmos.
Isso foi-me dito por uma enfermeira: “Quando se tem um AVC, nunca mais seremos a mesma pessoa”. Algo no qual nunca acreditei, pese embora hoje reconsidere essa atitude, de quando em vez.
Há 12 meses, imaginava que hoje, tudo isto não passaria de uma má recordação, quase esquecida. No entanto, não só o AVC não é uma lembrança, como continuo a viver com ele, deparo-me diariamente com as sequelas que me afetaram. Enfim, o sofrimento é relativo. Tal como referi no início deste trabalho, publicado na edição de fevereiro da “Alentejo Ilustrado”: tive sorte.
Desde logo porque sobrevivi. Num em cada três casos de AVC, recordo, a vítima morre, segundo as estatísticas portuguesas. E também por ter mantido intactas todas as capacidades do intelecto e da comunicação. Na realidade, padeci dos défices clás- sicos, com a perda de funcionalidade plena na perna, no pé, braço e mão do lado esquerdo. O que também não foi mau de todo, dado que não sendo esquerdinome deu jeito, sobretudo para um jornalista que ganha a sua vida escrevendo.
Em resumo, após ter estado internado em duas Unidades de Cuidados Continuados (UCC) privadas, mas através do sistema do Serviço Nacional de Saúde (SNS), voltei a casa. Devo assinalar que essas duas experiências foram totalmente opostas: a primeira muito boa, com os fisioterapeutas a fazerem um trabalho fantástico; a segunda muito má, onde as fisioterapeutas não se interessavam minimamente pelos utentes no geral, indo ao extremo de me levar a desacreditar na minha recuperação. O que é imperdoável, e sem explicação plausível, a não ser a ausência de consciência e a total irresponsabilidade profissional.
Encerrado esse ciclo, regressei a casa, como disse, e é sobre essa fase que vos trago notícias, encerrando esta longa reportagem, sobre a vivência de um AVC, contada na primeira pessoa.
De volta ao conforto do nosso lar, deparamos com a diferença. Em tudo o que podem imaginar, depois de viver meio ano no seio de instituições de cuidados de saúde, mas também diferente para a normalidade da nossa família. Em particular o cônjuge, para quem igualmente as coisas mudaram radicalmente.
Quando na condição anterior usufruíamos de equipas compostas por enfermeiras e auxiliares, sempre em nosso redor, agora em casa, a tratar de nós, temos a esposa ou marido, (ou namorada no meu caso), ou seja, alguém externo ao mundo hospitalar e que por inerência se tornou em cuidadora informal. Assim se chama quem vivendo connosco, sem nada pedir, assume obrigatoriamente esta função para nos ajudar, apoiar, acompanhar.
Perguntem se foi obrigada a isso? Claro que não. Conheci vários utentes a quem a “sua cara-metade” lhes voltou as costas, partindo em busca de um novo amor, porque “só temos uma vida”, como dizem. Ali abandonando os utentes, em cadeiras de rodas ou acamados, em todos os casos, desamparados. Na verdade, quem está connosco não faz a mínima ideia das responsabilidades de que, sem querer, foi incumbido. Vai-se apercebendo, aprendendo, preocupando.
Antes de mais, esta pessoa tem de fazer tudo em casa, porque ao nos encontrarmos fisicamente muito condicionados, pouco ou nada conseguimos fazer no lar. Ora isto, o preparo das refeições e do quarto de dormir, a limpeza e higiene, etc., correspondia ao trabalho executado pelos auxiliares de saúde.
De seguida vem a delicada tarefa de obter, distribuir, a posologia dos comprimidos e ter atenção para que tomemos toda a medicação a tempo e horas. Seis ou sete vezes por dia, todos os dias. Não bastando, devem regularmente medir a nossa tensão arterial e os níveis de glicemia, por causa dos diabetes. Por exemplo. Descrevi aquilo que eram as funções das enfermeiras nas UCC e que, agora, se sobrepõem às da cuidadora informal.
Portanto, aquela pessoa que partilha connosco a vida, vendo-se no papel de cuidador, perfaz o trabalho conjunto dos auxiliares de saúde e dos enfermeiros. A tempo inteiro. Aqui não há turnos para rumar a casa, para descansar, pois a sua casa transformou-se numa minúscula, mas real, unidade de cuidados continuados, onde elas/eles são responsáveis por tudo. Tudo, menos queixar-se, que isso cabe ao infeliz que teve o AVC.
Falámos da idade que tem esse cuidador? Não. Tenha a idade que tiver, é igual. Na sala de espera da fisioterapia no hospital, desisti de contar a quantidade de casais de idosos que vejo, onde me é impossível adivinhar quem é quem. Quem é o cuidador informal e quem é o utente?
Maria Batista Concha tem 81 anos, é cuidadora informal do seu marido José João Silva, antigo combatente em Angola, militar da GNR aposentado, agora com 85 anos, vítima de um AVC em maio de 2024. “A minha vida mudou do dia para a noite” afirma a esposa, “estou 24 sobre 24 horas com o meu marido. O meu tempo ficou de tal forma ocupado, que nem voltei a visitar a minha vizinha ou a ir às compras lá para casa”.
Se não fossem o seu filho e familiares próximos, não sabe como faria. Claro que a vida de José João sofreu uma reviravolta, com todos os défices que ainda tem. Porém, quem sempre o acompanhou, também viu o dia-a-dia completamente transtornado.
“A meio da noite, o meu marido acorda, e eu dou logo por isso. Levanto-me para ir ver o que se passa. Umas vezes é para ir à casa de banho, outras para saber que horas são”, afirma Maria Batista Concha, que apesar da idade e de precisar de uma bengala para se deslocar, demonstra uma coragem e resiliência a toda a prova. Os apoios são, como em geral neste país, fracos. “Consegui receber o apoio da Segurança Social, como cuidadora informal, mas o que faço com 400 euros?” – questiona.
Felizmente, o centro de dia disponibiliza profissionais para, dia sim, dia não, irem a sua casa ajudar na higiene do marido e nalguns cuidados ocasionais. Por esse serviço paga 300 euros por mês. Sobram 100. Neste caso, são ambos reformados, mas se forem mais jovens falamos na profissão do cuidador informal?
Não. Ela/ele que se desenrasque. Não bastava que um dos membros do casal sofresse um AVC, parando de trabalhar, para que o outro, além de ter de continuar a trabalhar, deva cuidar da casa, da família e ser cuidador. E quem repara nestes cuidadores? Ninguém.
Muitas vezes nem os próprios beneficiários, prejudicados pela condição psicológica em que vivem e pelo facto de o cuidador ser a sua mulher ou marido. Nem é por mal, será por força do hábito. Não é caso raro os cuidadores informais serem relegados para segundo plano, quando na realidade são o garante de que a vítima de AVC possa ter condições para regressar ao seu lar.
O apoio aos cuidadores informais deveria ser uma constante, para os familiares, amigos e mesmo os profissionais de saúde que acompanharam o seu caso. Nomeadamente, disponibilizar a possibilidade de acompanhamento em termos psicológicos, em prol da estabilidade emocional para ambos, no lar do utente. Se for amigo ou familiar, telefone a perguntar se o cuidador informal está bem, ou precisa de algum apoio. No meu caso particular tenho a Helena, a quem passei a chamar Helena de Troia.
Existe uma figura legal, desde 2019, para os cuidadores profissionais e para os informais, com um ligeiro apoio financeiro, mediante certos contextos sociais. Para o efeito pode solicitar o reconhecimento do Estatuto do Cuidador Informal junto da Segurança Social. E pode consultar as normas no artigo 5.º do Capítulo II do Anexo da Lei n.º 100/2019 para defender a sua posição. No entanto, o mais prático é contactar um movimento associativo dedicado aos acidentes vasculares cerebrais, tal como a Portugal AVC – info@portugalavc.pt ou por telefone 928 060 600 | 928 146 265 – para obter todas as informações cruciais.
Como se costuma dizer, “cada caso, é um caso”, e a cada um cabe gerir a sua recuperação, a adaptação do círculo familiar a si e vice-versa, e as al- terações profissionais inerentes. Sobre este processo de recuperação, que é longo, repetem-me que estas coisas “são rápidas a aparecer, mas a irem embora…”.
Gostaria de realçar a excelência dos terapeutas da equipa móvel, que o SNS facilita para irem ao nosso domicílio quando a ele regressamos. E, por conseguinte, também o fabuloso trabalho da terapeuta ocupacional Carla Saramago e da fisioterapeuta Maria Margarida Jesus, ambas profissionais do Hospital do Espírito Santo em Évora. Acreditem, o SNS funciona muito bem, e só percebemos isso quando precisamos seriamente dos seus cuidados. Caso tenha dinheiro ou seguros e deseje ser tratado no privado, todos agradecem: os do privado porque auferem, e o SNS porque desentope as filas dos utentes em espera.
De tanto criticar, devo reconhecer que, se há um nome de um político a quem não se fez justiça, porque não vemos o seu nome em muitas ruas das cidades no país, esse homem é António Arnaut. O ministro dos Assuntos Sociais que, contra tudo e contra todos, resolveu por decreto fundar o Serviço Nacional de Saúde.
Quantas vidas se salvam todos os dias em Portugal? Defender o SNS não é uma questão política, é uma necessidade social e familiar tão básica, tão simples, como respirar oxigénio. Uma questão de bom senso e humanismo.











