Ana Baião, a fotojornalista que eterniza a alma do Alentejo

Ana Baião nasceu em Lisboa, cresceu em França, mas foi pelo Alentejo que se “apaixonou”. Fotojornalista de referência no Expresso, construiu uma relação profunda com a região, marcada pelo cante e pelas tradições populares. Dessa ligação nasceram três livros de fotografia e, agora, prepara-se para eternizar os Jordões, prática ancestral exclusiva de Pias. Júlia Serrão (texto) e António Pedro Ferreira (fotografia de Ana Baião)

“Só conheci o Alentejo perto dos meus 10 anos”, lembra Ana Baião, evocando as suas raízes alentejanas: os pais são de Pias, concelho de Serpa. Ela já nasceu em Lisboa, mas cresceu em França, para onde a família emigrou, não tinha mais de ano e meio. As “pequenas viagens” ao Alentejo, que começaram depois do 25 de Abril, sempre que a família vinha a Portugal, acabaram “por ser uma tradição que até hoje não se quebrou”.

Por essa altura, a sua família materna estabelecera-se na zona de Leiria e a paterna na de Almada. O atraso do Alentejo, muito marcado pelos longos anos de ditadura, impressionou-a. “Nem as estradas estavam alcatroadas…”. Tudo era muito diferente da realidade a que se habituara em França. Em Pias, não tinha muitas crianças para brincar, sendo que o facto de “mal” falar português também não ajudava. “Não posso dizer que tenha sido logo um fascínio. A minha relação com o Alentejo foi-se construindo”.

É já durante a adolescência, depois de a família regressar de vez a Portugal, que a fotojornalista começa a conhecer um pouco mais a região. “Aí comecei a apaixonar-me verdadeiramente pelo Alentejo, enquanto território e paisagem visual”.

Foi a paisagem física, mas não só. “Também pela forma de ser do alentejano, que é uma pessoa mais calma, que sabe saborear as coisas, pela gastronomia, e pelas tradições culturais. Foi uma relação que se foi fortalecendo ao longo dos anos e, hoje, embora tenha nascido em Lisboa e tenha muito orgulho disso, não sei se não tenho maior orgulho de ter estas raízes alentejanas que estão sempre a fortalecer-se a cada ano que passa”, diz Ana Baião.

A primeira lembrança que tem do cante, que daria o mote à publicação dos seus três livros de fotografias sobre o tema a partir de 2017, é de ouvi-lo cantar nas tabernas da zona de Almada, durante a infância, onde o “avô Manel” a levava ao fim de semana, quando ia ter com os amigos. “Ele punha-me em cima de um banco, e eu ficava ali toda contente a cantar com ele e com os amigos dele”.

Quanto à fotografia, isso é outra história. O pai, conta,“gostava muito de fotografia, andava sempre com uma máquina”, mas era só “o fotógrafo da família”. Um dia, Ana Baião pediu-lhe a câmara emprestada e começou a fotografar “tudo o que achava interessante”, desde árvores a monumentos, paisagens e flores. “Comecei a ter algum gosto pela fotografia, talvez aí pelos meus 13 anos”.

A especialização na área aconteceu mais ou menos por acaso, enquanto esperava nova época de candidatura ao ensino superior. No ano em que não conseguiu entrar em Antropologia, lá convenceu o pai a pagar-lhe o curso avançado do Instituto Português de Fotografia. Gostou tanto que acabou por fazer também o complementar, “que abarcava a fotografia de estúdio, de moda e o fotojornalismo.” Ao mesmo tempo, fez dois cursos na área do teatro, de que gosta também muito: Produção e Gestão de Espetáculos e Técnicas de Cenografia.

Terminado o último curso de fotografia em julho de 1988, no dia 1 de dezembro desse mesmo ano começou a estagiar no jornal O Século, iniciando o seu percurso na imprensa. “Se me perguntar se, na altura, queria muito ser fotojornalista, não sei. Gostava de fotografia. O jornalismo acabou por entrar de repente na minha vida. Já depois de estar a estagiar no jornal, aí sim, senti que este era o meu lugar”, frisa. Passou pelos jornais Diário de Notícias e O Independente, colaborou com várias revistas, até chegar ao semanário Expresso, em 2000, onde é fotojornalista e coordenadora, há 12 anos, da editoria de fotografia.

Com um currículo de excelência, soma várias exposições individuais, tanto de fotografia mais “artística” como fotojornalismo, e coletivas. Também recebeu distinções por trabalhos jornalísticos, de que destaca a Medalha de Ouro dos Direitos Humanos que recebeu com o jornalista José Pedro Castanheira, pela reportagem publicada no Expresso sobre pessoas portadoras de trissomia 21.

Uma estadia em Timor, a trabalho, marcou-a “muitíssimo enquanto pessoa”, porque “mais do que uma experiência de trabalho, foi uma oportunidade para viver de uma forma completamente diferente do que estamos habituados”. A equipa de reportagem vivia numa tenda e dormia no chão, e mesmo mais tarde, quando passaram para uma das casas abandonadas pela população que se refugiou nas montanhas, não tinha de comer, o que obrigava a“pedinchar as rações de combate aos soldados”.

Ana Baião assegura que “mostrar ao mundo os acontecimentos” continua a maravilhá-la. “O que me fascina ainda no fotojornalismo, na fotografia, é, de facto, o poder que a imagem tem em transmitir situações, sensações, seja o que for. O poder de mostrar e lembrar às pessoas o que está a acontecer. Podemos ver isso agora, com Gaza”.

DO CANTE AOS JORDÕES

Em 2015, quando uma editora lhe propôs pu- blicar um livro de fotografia, não era propriamente sobre o cante alentejano que estariam a pensar. “A ideia era fazer um livro com o meu trabalho enquanto fotojornalista, de reportagens que eu já fiz por esse mundo fora, e de alguns conflitos onde estive”. Mas tendo verificado que “não havia praticamente nada em termos fotográficos sobre o cante”, por altura da candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade, sugeriu o tema.

Admite que pesou também o facto de estar muito ligada ao avô Manuel: “Na apresentação do meu primeiro livro, quando começava a falar do meu trabalho tinha sempre de falar do meu avô e várias vezes vieram-me as lágrimas aos olhos”.

Apesar da ligação precoce ao cante, a verdade é que pouco sabia sobre o tema, no qual trabalhou durante 10 anos para publicação de três livros: “Cante, Alma do Alentejo” (2017), “Cuba Cante, Tabernas e Talha” (2021) e “10 Anos de Cante” (2024). “Não tinha a mínima ideia do que isto era, que havia grupos mistos, que o cante era ensinado nas escolas e tinha uma parte religiosa. Foi todo um mundo novo”.

As primeiras fotografias para esta temática foram tiradas a 25 de abril de 2015. “No início, os grupos corais acharam estranho estar constantemente a aparecer, a fotografar ensaios e espetáculos, pois nunca tinham tido alguém a fotografá-los de forma sistemática”. Depois, habituaram-se e aceitaram-na “muito bem”. Para o segundo livro, fez a rota das tabernas de Cuba, onde os cantadores se reúnem, durante duas semanas. “Ia todos os dias à hora de almoço e à de jantar, e sentava-me no meio deles à espera que cantassem. A ideia era habituá-los à minha presença, e poder fotografá-los de forma descontraída”.

Apesar da covid-19, que a impediu de registar “uma série de festas relacionadas com o vinho da talha por altura do São Martinho, porque tudo parou”, confessa-se “satisfeita” com o resultado final. “O livro está bonito, e acho que tem ali essa marca que fica para a História”.

A trilogia editorial, que se fecha com “10 Anos de Cante”, é uma homenagem aos grupos corais. E também um contributo para a salvaguarda deste património. “Faço-o porque acho que o cante é muito importante na identidade do povo alentejano, pelo que deve ser preservado, guardado de alguma forma para memória futura”.

Num novo projeto, a fotojornalista regressa ao Baixo Alentejo para reunir imagens dos Jordões, uma prática ancestral exclusiva de Pias, que começa na noite de São João e acaba na noite de São Pedro. Feitos em casas particulares, os Jordões consistem na construção de um altar – revestido de alecrim, faias e outras ramagens de acordo com a tradição – em honra de São João Baptista, à volta do qual é entoado o cante ao santo. A montagem dos Jordões era um meio de pagamento de promessas muito praticado durante a Guerra Colonial, se filhos, maridos e namorados voltassem a casa e com saúde.

Ana Baião começou a fotografar os Jordões em 2017, quando trabalhava no seu primeiro livro sobre o cante. “Já fotografei uns três ou quatro anos, e ainda só apanhei dois que foram feitos para cumprir promessas. Os outros partiram de associações, justamente com vista a não se perder a tradição”. Explica que está na fase de ver as fotografias que fez, verificar se tem tudo, e esperar pelo texto de uma antropóloga que explicará tudo sobre a tradição. Gostava de ter o livro pronto para publicação no próximo verão, precisamente por altura dos Jordões.

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