Ana Paula Fitas: “Da pandemia à guerra, configuração geopolítica”

Os primeiros cinco anos da segunda década do século XXI – da pandemia à russofobia e à nova configuração geopolítica e económica internacional. Ana Paula Fitas (texto)

Quem pensa que os dois anos de pandemia pelo vírus SARS-COV2, podem ter alterado (pela incisiva repetição mediática multidimensional) o quadro mental coletivo das representações sociais, promovendo a adaptabilidade e desenvolvendo a rapidez dessa adesão a imprevistos, constata o impacto social mundial do fenómeno covid-19.

Do ponto de vista sociológico e psicossociológico ficam, como consequência, preparadas as condições subjetivas de aceitação drástica de imprevistos.

Neste contexto, a guerra na Ucrânia não po- dia ter outra resposta, a não ser a da adesão dos europeus à solidariedade que, tal como durante a pandemia, minimizou danos para todos. A culpabilização da Rússia (ignorando o genocídio das populações russófonas da Crimeia, de Lugansk e do Dombass!), encontrando ecos profundos de um enraizado anticomunismo (que continua, no inconsciente coletivo, a ser dirigido contra uma representação social popular/populista da Rússia) das gerações anteriores, que se revê em práticas, não das duas gerações que lhe sucederam, mas da terceira geração, próximas da extrema-direita radical onde todos reconhecemos traços identitários neonazis.

Após dois anos de “obsessão pandémica” seguiram-se dois anos de solidariedade com a Ucrânia e de russofobia propagandeada, manipulada e intencional que tentaram “colar à pele” dos europeus.

Agora, cinco anos passados, o Mundo, visto sob o ponto de vista europeu (e consequentemente português), está mais que virado “de pernas para o ar”: Trump (exorcizado no seu primeiro mandato) surgiu como um negociante experiente no contexto dos múltiplos conflitos de interesses cruzados.

Putin promoveu a ideologia do “mundo multilateral” (de que os BRICS são o melhor exemplo), na sequência das veementes sanções impostas à Rússia pelos europeus e pela Administração Biden; Zelensky gritou, berrou e exigiu mais e mais apoios militares e financeiros para fazer a guerra e a União Europeia acolheu e forneceu tudo (em detrimento da qualidade de vida dos cidadãos que, na condição de contribuintes, irão pagar toda a produção e comércio da indústria de armamento), ignorando completamente os valores erguidos após a II Grande Guerra Mundial, a título preventivo, contra novos “déspotas” que pudessem surgir.

Mas que, como podemos constatar, deixaram emergir e alimentaram através de uma comunicação social incapaz de condenar, com contundência, atentados ilícitos contra os Direitos Humanos, que cavalgaram a onda do genocídio do povo palestiniano levado a cabo, até ao limite por Israel e se prolongaram até à banalização da violência que aceitou a Guerra na Ucrânia, promovendo-a até ao vómito, junto da opinião pública.

Porém, a natureza do segundo mandato de Trump surpreendeu pela viragem económico-financeira para a prioridade da dimensão comercial, em detrimento dos serviços (área mais ou menos assegurada por Elon Musk), ao mesmo tempo que abandona instituições e acordos internacionais, com destaque, para a NATO e para outros sectores de investimento externo que constata serem um “inútil vazadouro de dinheiro” dos contribuintes – com a mesma lógica economicista com que “exterminou” o Departamento da Educação, atribuindo e delegando a gestão desta matéria para o nível federal, isto é, para cada Estado (procedimento político que lembra a “descentralização de competências” da Educação, em Portugal, para as autarquias!).

Os denominados “danos colaterais” da nova Administração da Casa Branca reflete-se, infelizmente, na deportação forçada de milhares (milhões?!) de pessoas, apenas e só porque o cálculo económico dos EUA, no horizonte do projeto Make America Great Again (MAGA), indica serem maté- rias não produtivas para a sociedade da riqueza e do lucro que Trump quer construir nos EUA.

Além disso, também subitamente, o presidente norte-americano revelou o seu pragmatismo diplomático relativamente ao presidente da Federação Russa, Putin, com quem tem em curso o primeiro processo sério de cessar-fogo, com vista a um Acordo de Paz para a Ucrânia.

A UE reagiu “em rebanho” e em simultâneo, tentando explorar a imagem do próprio presidente dos EUA. Contudo, ele explicou às lideranças europeia, chinesa e outras o papel e o modo de utilização das tarifas alfandegárias… que entraram em vigor no passado dia 3 de abril e que se materializam em impostos à importação: 20% para a Europa, 34% para a China, de 26% para a Índia, de 49% para o Cambodja e de 10% para o Brasil – com destaque para a taxa de 25% para toda a indústria automóvel. Produzir mais e consumir a produção interna é a ideia-base do conceito de “poupança” assente na “regra neoliberal” do “corte nas gorduras do Estado” (também “soa” a familiar, verdade?!).

Será a governação de Trump, a troika norte-americana? O objetivo? Baixar significativamente a dívida pública e a dívida externa, reforçando, por um lado, o distanciamento de organismos como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e todos os que, na sua opinião, só forçam gastos financeiros dispensáveis e, por outro lado, a consolidação e independência (isolamento?!) dos EUA.

Pela primeira vez, a União Europeia foi “apanhada de surpresa” e enquanto andou a pensar na resposta (“de retaliação”?!), após compreender que as sanções dos EUA são uma arma de penalização pelo apoio a Zelensky (através da promoção da guerra e do comércio do armamento), Trump invocou o (des)investimento lesivo do desenvolvimento da Gronelândia por parte da Dinamarca, considerando a maior península do Ártico “americana”… tal como o afirmou, a propósito do Canadá – que, sem ter sido anunciado, já integra o indicativo internacional dos EUA.

Para maior espanto dos “27 anões europeus” (alegoria suscitada pela análise linguística dos discursos da Comissão Europeia e da argumentação das lideranças nacionais dos Estados-membro), Putin considerou de imediato, as afirmações de Trump como “naturais”, chegando a afirmar que estes objetivos têm continuidade nas administrações norte-americanas (bem como o do Canal do Panamá), desde os anos 90, do século XX.

As macroestratégias evidenciam a cegueira das microestratégias. Porém, quando parecia ha- ver um momento de aceitação perplexa, remetendo aparentemente para a reflexão e a ponderação… Putin, sem barulho, outros ruídos ou anúncios desnecessários, avançou então para o reforço da militarização de toda a área da Federação com fronteiras, designadamente a norte… quiçá para lembrar a Trump que o Estreito de Bering não é para atravessar – pelo menos sem a medonha Guerra Mundial que desencadearia o temível confronto bélico e nuclear entre a Federação Russa e os EUA.

No início de abril, a União Europeia anunciou o aumento das taxas alfandegárias a produtos/conteúdos digitais norte-americanos e o Canadá determinou taxas alfandegárias de 25% para a importação de automóveis americanos. Até ao momento, estas tímidas “retaliações” serviram, no mínimo, para fazer Trump dizer que, quem não quiser pagar as novas taxas, tem outra opção: instalar os seus investimentos nos EUA, fazer aí a sua produção e a partir daí, a sua distribuição.

De facto, como em toda a estratégia de guerra, o fator surpresa foi decisivo para a inversão da correlação de forças no mundo ocidental, com o afastamento dos EUA da União Europeia (que dava como “adquirido” o apoio do “tradicional amigo/tio” da América) e com a sua imprevisível aproximação político-económica à Federação Russa.

Ao contrário do que possa parecer, esta emergência da guerra comercial, por um lado, reduziu a escalada bélica e militarista da e na Ucrânia, devolvendo-a à problemática da diplomacia – de onde não deveria ter saído. Por outro lado, dá à União Europeia a oportunidade de evitar uma III Grande Guerra que incontornavelmente pagaremos, mas que, pelo menos por ora, parece adiada no campo dos con- frontos bélicos e da frente de batalha que vimos caminhar, a passos largos, inconscientes e irres- ponsáveis, para uma escalada descontrolada.

Se Trump pode dizer, à porta do seu Air Force One: “Que beleza. Tudo a caminhar bem… porque se sente que temos controlo…”, a União Europeia deveria aprender a exercer política ao invés de brincar “aos bons e aos maus” – porque, de facto, a primeira e comum prioridade contemporânea da defesa é, indiscutivelmente, evitar e impedir a guerra… e, numa próxima escalada de argumentos e tensão política, não avançar, nunca, para a confrontação militar, sob pena de comprometer ainda mais a fragilidade política e económica da União Europeia e, consequentemente, a vida dos cidadãos, agravando a falta de qualidade do mundo que vamos deixar às gerações mais novas e futuras.

Moral da história: não sei se será por tudo isto que adoro anedotas alentejanas e/ou sobre alentejanos!

A autora é antropóloga, investigadora e escritora

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