António Caixeiro: “Depois da classificação Unesco, tornou-se moda cantar a moda”

António Caixeiro começou a cantar aos 13 anos, afirmando-se como um dos nomes incontornáveis do cante alentejano. Dez anos depois da classificação pela UNESCO, lamenta a standarização da forma de cantar, mas diz que valeu a pena: “Há uma coisa que me deixa tranquilo, ter a possibilidade de cantar a nossa própria história”. Luís Godinho (texto) e Cabrita Nascimento (fotografia)

Qual é que é a moda que mais gostas de cantar?

Boa pergunta. Se puxarmos pelo lado mais sentimental é a “Cuba Terra Bendita”. Se puxarmos pela potência de um grupo, de um coro, se calhar talvez o “É Tão Grande o Alentejo”.

Que é quase um hino regional.

É o hino dos alentejanos. Acho que deveria ser adotado como hino em todos os concelhos alentejanos para que, a uma voz, defendêssemos esta terra. Essa moda fala daquilo que tem sido o Alentejo, a forma como a região tem sido vista pelos governantes e por quem a manda. Tem sido esquecida esta margem ao sul do Tejo, há gente desempregada, terras abandonadas e pessoas que aqui existem, mas que às vezes parece que não contam para quem tem o poder de decidir.

E é uma letra que, infelizmente, se tem mantido atual.

Já houve um evento em que participámos e alguém nos disse para não cantar esta moda pois já não retrata o Alentejo. Respondi que, pelo contrário, acho até que representa muito melhor o sentimento de quem aqui vive do que muitas vezes se pode pensar.

É curioso termos começado a entrevista por aqui pois uma das críticas que muitas vezes surgem quando se fala de cante é justamente a de as modas, pelo menos algumas, não refletirem os dias de hoje.

Encaro essa questão de duas maneiras. Se, por um lado, é importante haver inovação para que as coisas possam subsistir no tempo, haver novas letras, haver novas músicas, por outro lado este cante, que é cantar a tradição, puxa-nos para o que se cantava no passado e continuou cantando ao longo das décadas, de geração em geração. Acho que o grande problema não será tanto esse…

Será a falta de mestres?

Ora aí está, acho que o grande problema é esse, os mais velhotes vão morrendo, os mestres que ficam já não têm o mesmo conhecimento dos que partem e que cantaram durante 50 ou 60 anos da sua vida. E isto é muito importante. As letras cantam-se – e este é um problema que verifico nas camadas mais novas -, mas não há uma pesquisa, ou há muito pouco, sobre as tradições de cada terra. Por exemplo, a Cuba tem um cancioneiro próprio, tem uma forma de cantar própria, que não deve ser standardizada. O que quero dizer com isto? Bom, quando ouvimos um grupo de Castro Verde facilmente se identifica que aquele grupo é de Castro, porque quem canta conhece as maneiras como se fala. E o que está a passar-se agora é que a malta mais nova aprende a cantar por vídeos do Facebook ou do Youtube e a mesma moda, que era cantada de várias maneiras na região de Almodôvar, de Castro, de Serpa ou de Cuba, é agora cantada da mesma maneira por toda a gente. O bom que a internet tem para divulgar o nosso trabalho, para mostrar aquilo que se canta e que se faz, acaba por ser mau nesse sentido de tornar tudo igual.

É um estudo, uma pesquisa, que tem de ser feita terra a terra?

Tem de ser feita, não está a ser feita e esse é um dos problemas do cante. Quanto às letras, muitas são intemporais e , por isso, continuam a fazer todo o sentido, outras começam a estar descontextualizadas e talvez seja necessário adaptar algumas para retratar aquilo que se se vive, é essa a natureza do cante.

Voltando a esse risco de tornar tudo igual, é uma tendência que se acentuou depois da classificação como Património da Humanidade?

Claro… desde logo porque até 2014 o cante não era fixe, a partir daí é que se tornou moda cantar a moda, passe a redundância. Então, quando a Unesco reconheceu aquilo que fazemos como importante para a humanidade, houve um grande boom de grupos corais e de interesse da malta nova pelo cante. Até aí eram poucos os grupos que nasciam.

Curiosamente, os Bafos de Baco, que fundaste e que integras, nasceu precisamente em 2014, o ano da classificação.

Foi a 14 de novembro, poucos dias antes de ser conhecida essa decisão. É fácil juntar malta aqui na Cuba para cantar, é muito usual ao final do dia, ou ao fim de semana, chegar-se a uma taberna e haver malta a cantar, gente de todas as idades… então havia um evento agendado para dia 14, juntámo-nos e lá fomos. Nasceram os Bafos de Baco no dia 14; o cante seria classificado a 27 desse mês. Surgimos também à boleia desse reconhecimento pela Unesco, mas não reféns dele. Não foi uma obrigação, antes uma forma de afirmar o lugar dos jovens nesta arte, até porque todos eles são netos, filhos, sobrinhos de quem já cantava e canta há muitos anos.

É também o teu caso?

O meu caso também é, se bem que não cantei com a minha avó. A minha avó paterna cantava num grupo, as Ceifeiras do Alentejo, mas morreu tinha eu nove anos… só comecei a cantar aos 13, então não tive a experiência de cantar e o orgulho que vejo nos meus colegas por cantarem com os avós, com os tios, com os pais. Mas como isto é uma terra pequena, em que todos são próximos, aproprio-me do avô do outro, porque há um carinho paternal…

\Como é que chegaste ao cante?

Tinha 13 anos. Havia e há, ouso a dizer, o grupo mais emblemático do Alentejo, que são os Ceifeiros de Cuba, um grupo que só por si já é uma referência no cante alentejano, e uma vez disseram-me para ir lá experimentar, sem grandes compromissos. Fui a dois ensaios, no primeiro estavam a ensaiar o Cante ao Menino, que é muito exigente, difícil de cantar, é uma moda com cerca de sete minutos… é das menos interessantes nesse processo de aprendizagem, mas depois quando a conheces e tens a noção do real sentido daquela moda religiosa, já a cantas de outra maneira. De modo que lá fui e não foi fácil.

Porquê?

Poucos eram os jovens que se tinham aproximado do grupo… aquilo era assim como no futebol, uma pessoa treina para marcar golos. Eu e o meu irmão gémeo [Luís Caixeiro] fomos para fazer pontos, cantar como os mais velhos, era isso que me orgulhava. Mas a adaptação ao grupo foi difícil, para alguns eu ia ocupar o espaço de um homem que cantou aquilo 30 ou 40 anos, outros cantadores mentalizaram-se que o cante acabaria no dia em que morressem. As coisas não são assim, e ainda bem.

Tens também uma carreira musical paralela à dos Bafos de Baco. Consegues separar esses dois registos?

Há uma diferença muito grande entre cantar o cancioneiro tradicional alentejano, e um alentejano a cantar. Quando se quer misturar as coisas é sempre o cante que perde. Eu posso cantar uma música pop, mas não posso dizer que é cante alentejano, e disso têm surgido vários exemplos nos últimos tempos. Isto para salvaguardar aquilo que os velhos nos deixaram, com toda a carga emocional que daí resulta.

A procura da autenticidade?

É normal, aqui na Cuba, dizer-se que antigamente é que se cantava bem. As minhas referências dessa autenticidade não são as dos mais novos. Agora, quando transportamos isto para outros palcos… num determinado espetáculo tenho as minhas músicas originais, não têm nada a ver com o cante alentejano, mas levo três rapazes e comigo acabamos por cantar uma moda alentejana. Isto é cante alentejano. As modas do cante são e sempre foram cantadas na taberna, um cante espontâneo, com um número variável de vozes, sem trajes, nem três filas, sem os “altos” posicionados ao meio. O cante nem precisa do silêncio, ao contrário do fado, pode ter o barulho do copo a bater no balcão ou da faca a bater no prato, tudo isso faz parte do cante.

Passados 10 anos da classificação, valeu a pena?

Continuo a achar que vale a pena honrar estas tradições e passá-las às gerações futuras. Há uma coisa que me deixa tranquilo, ter a possibilidade de cantar a nossa própria história. E isso é uma coisa que mais povo nenhum consegue fazer.

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