António Cândido Franco: “Interessam-me figuras rebeldes e criativas”

António Cândido Franco venceu o Grande Prémio de Literatura Biográfica da Associação Portuguesa de Escritores com uma biografia sobre Luiz Pacheco. Investigador e escritor, com uma longa carreira como docente na Universidade de Évora, diz que o seu trabalho como biógrafo “é uma tentativa de fazer justiça” a figuras maiores, que foram controversas no seu tempo. Júlia Serrão (texto)
e Francisco Romão Pereira/Observador (fotografia)

A obra de António Cândido Franco “O Firmamento é Negro e Não Azul – A Vida de Luiz Pacheco” venceu por unanimidade do júri da Associação Portuguesa de Escritores o Grande Prémio de Literatura Biográfica, tendo o júri sublinhado a “notável capacidade criativa” da sua escrita.

A primeira reação do investigador à notícia foi de “gratidão”, para depois dirigir uma “palavra de solidariedade para todos os escritores portugueses que nunca receberam um prémio”, que são a esmagadora maioria da classe. “Muitos vivem em condições financeiras precárias e não veem o seu trabalho reconhecido em nenhum campo. Não têm dinheiro, não têm atenção, não têm adesão das editoras. Porém, o seu trabalho é tantas e tantas vezes merecedor de apoio”.

Diz que é importante encontrar “mecanismos de reconhecimento” de todos os que se dedicam “com empenho à tarefa da escrita”. Exemplificando com o agora biografado Luiz Pacheco, que recorda ter escrito nos jornais e publicado livros ao longo de toda a vida e nunca ter recebido um prémio literário. “É uma ironia tremenda uma biografia sobre ele receber agora um grande prémio”.

Quando na primavera de 1972, com 15 anos, António Cândido Franco encontrou Luiz Pacheco na Feira do Livro de Lisboa, já sonhava ser escritor. Apaixonara-se pela leitura e nutria esse sonho desde que lera Adolfo Simões Muller, Enid Blyton e Aquilino Ribeiro, entre os seis os 12 anos.

A figura de Luiz Pacheco, que acabava de publicar o livro ‘“Exercícios de Estilo”, com “grande eco junto da crítica e do público”, impressionou-o. Não só pelo seu aspeto físico, “míope e descarnado”, como pela forma como se apresentava: “embrulhava-se num trapo branco, prendia as calças na cintura com uma corda, deixando ao léu uma parte das pernas esqueléticas e calçava uns sapatos esburacados”. Refere: “Percebi logo que estava diante de alguém fora do comum, com uma inquietação interior que merecia ser seguida. Era um merecimento não apenas literário, mas humano”.

FIGURAS REBELDES E CRIATIVAS

Com vasta obra publicada no campo do romance histórico, poesia e ensaio, esta é a terceira biografia do investigador, que antes publicou as biografias de Mário Cesariny (“O Triângulo Mágico”, 2019) e de Agostinho da Silva (“O Estranhíssimo Colosso”, 2015). Concorda que sendo figuras maiores, alguns dos seus biografados foram marginalizados no seu tempo. Luiz Pacheco, por exemplo, foi considerado “maldito e libertino”.

Referindo a obra de exceção de cada um deles, afirma: “Interessam-me muito estas figuras rebeldes e criativas, que a sociedade deixa na margem, temerosa da sua capacidade de rebeldia e de utopia. O meu trabalho é uma tentativa de lhes fazer justiça”. Vai no mesmo sentido ao escrever romance histórico, a que chama “dramas biográficos”. “Figuras malditas como Leonor Teles ou o Desejado são retratadas com a simpatia que merecem os destinos trágicos”.

Filho único e órfão de pai, António Cândido Franco nasceu e cresceu em Lisboa, na Graça. Em casa, as horas eram sobretudo dedicadas à leitura. Mas, como dá conta, também havia muita “gandaia nas ruas velhas” da capital, para os lados da Mouraria, no jardim do Largo da Graça, e no miradouro da Igreja de Nossos Senhor dos Passos, que teve “de frequentar ao domingo para catequese e primeira comunhão”.

Aponta: “A igreja era e é assustadora – um pesadelo em forma de templo. Cá fora, porém, brilhava o sol e a chuva, havia poucos carros, jogava-se à bola, havia cães e gatos vadios, urinóis, e até uma pequenina biblioteca no jardim da Graça com jornais e livros para empréstimo”.

Frequentava o último ano do curso dos liceus no Liceu Nacional Gil Vicente, quando o 25 de Abril de 1974 aconteceu: “Foi uma explosão de alegria.” Antes do liceu passou pelo Colégio Militar, o que lhe chegou para “ficar vacinado” contra a tropa. Por isso, na altura de cumprir o serviço militar, declarou-se objetor de consciência, pedindo a Agostinho da Silva que fosse assegurar as suas convicções.

“Defendo intransigentemente a resolução de qualquer conflito por meio da não violência. É um absurdo a humanidade não se ter ainda desfeito das armas e dos exércitos. A existência de guerras é um sinal alarmante do estado grosseiro em que está a evolução da sociedade atual. O verdadeiro desenvolvimento humano é moral e não técnico”, sublinha.

RUMO A SUL

António Cândido Franco licenciou-se em filologia românica na Faculdades de Letras da Universidade de Lisboa, é mestre em literaturas brasileira e africanas de expressão portuguesa, e doutorou-se com a tese “A Literatura de Teixeira de Pascoaes”, pela Universidade de Évora, onde se fez docente. A ida para Évora deu-se no ano letivo de 1989/1990, quase uma década antes do seu doutoramento.

Aposentou-se no dia 1 de junho de 2024. “Estive quase 35 anos ao serviço desta escola púbica. Também no domínio do ensino temos muito para evoluir. Precisamos de um ensino livre, em que a motivação seja a aprendizagem, não o diploma, e muito menos o empreendedorismo e a empregabilidade, que são valores muito pouco pedagógicos da escola atual”, comenta.

Para dar conta que sonha uma escola muito diferente da que temos hoje, “que é um arremedo grotesco do que na verdade interessa – uma escola poética, sem muros, como aquela que Agostinho da Silva defendeu nos seus textos pedagógicos. A escola de hoje é um híbrido entre a prisão e a grande empresa despersonalizada em que só o rendimento interessa”.

Também olha o Alentejo com “preocupação”, salientando que a agricultura com pesticidas, as monoculturas, o olival intensivo e o agronegócio “são péssimos sinais” do tempo presente. “Precisamos de uma nova reforma agrária, assente numa produção agrícola limpa de venenos, pouco predadora de energia e que favoreça a autonomia e a solidariedade local. O Alentejo, como as restantes regiões ibéricas, não está minimamente preparado para os tempos de mudança climática e de colapso social que cada vez mais se avizinham”.

Atualmente, António Cândido Franco está a fazer uma “prolongada” investigação sobre Teixeira de Pascoaes, em Amarante. “Pela ruralidade e pelo primitivismo, é uma figura invulgar com um drama biográfico apaixonante”, nota.

Gostaria de escrever ainda a biografia de Júlio Henriques, nascido em 1948, “refratário ao serviço militar que passou a salto a fronteira em Trás-os-Montes, viveu em Paris, e regressou depois da Revolução a Portugal” para participar no jornal “Combate” e fazer a revista “Subversão Internacional”, editando atualmente “Flauta de Luz – Boletim de Topografia”, que Cândido Franco considera “talvez a melhor revista que hoje se publica em Portugal”.

Conclui: “Ficava assim feita a primeira biografia capaz de reconstruir melhor e o mais secreto da geração de José Mário Branco – o homem do ‘mudar de vida’, consigna que vem do lado da poesia (a expressão é do poeta francês Arthur Rimbaud, que Mário Cesariny traduziu) e que tanta falta hoje nos faz”.

PERCURSO LITERÁRIO

De “Memória de Inês de Castro” (1990), a sua primeira obra publicada, a “O Essencial sob Guerra Junqueiro” (2023), edição da Imprensa Nacional Casa da Moeda, o percurso literário de António Cândido Franco é extenso e inclui vários géneros, da biografia, que lhe valeu o prémio da APE, à ficção e ao ensaio (“Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal”, por exemplo) ou à poesia – “Estâncias Reunidas” é uma coletânea da sua obra poética entre 1997 e 2002.

Partilhar artigo:

edição mensal em papel

Opinião

PUBLICIDADE

© 2024 Alentejo Ilustrado. Todos os direitos reservados.

Desenvolvido por WebTech.

Assinar revista

Apoie o jornalismo independente. Assine a Alentejo Ilustrado durante um ano, por 30,00 euros (IVA e portes incluídos)

Pesquisar artigo

Procurar