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António Pé-Curto: “Sem paixão, arriscamos ter vinhos sem alma”

António Pé-Curto nasceu em Estremoz, licenciou-se em Geologia pela Universidade de Évora e doutorou-se em enoturismo pelo Iscte - Instituto Universitário de Lisboa. À atividade na indústria farmacêutica juntou a paixão pelo vinho, área em que formou com a mulher uma ‘start up’ tecnológica. Luís Godinho (texto)

Como é que alguém do mundo das farmacêuticas acaba no do vinho? 

Sempre gostei de vinho, mas o grande impulso veio pela minha mulher, agrónoma de formação. Inicia em 2015 o mestrado de Enologia e Viticultura no Instituto Superior de Agronomia e o vinho passa a fazer parte dos nossos dias (não só no copo). Em 2018 criamos uma ‘start up’ tecnológica na área do vinho, ganhámos um concurso europeu de empreendedorismo, no ano seguinte fomos a única start up da área do vinho a ser selecionada pela Web Summit e em 2020 fomos nomeados pela “Revista de Vinhos” na categoria empresa mais inovadora do sector. Todos estes eventos levaram-me a fazer a tese de doutoramento exatamente no enoturismo. Uma forma de ligar estratégia, vinho e empreendedorismo.

Há a ideia de o enoturismo ter ainda bastante potencial por explorar no Alentejo.

É um dos sectores do turismo com maior potencial económico. A maior parte dos consumidores que planeia e procura este tipo de turismo é pouco sensível ao preço e despende muito dinheiro nesta atividade. O Alentejo é um terço de Portugal, tem uma amplitude de gentes, costumes e saberes muito diversas, mas a essência e o sentimento são sempre os mesmos. Ou seja, é possível promover o todo e tirar partido das diferenças, criando uma região ímpar (a nível mundial) para atrair enoturistas.

Que avaliação faz do que existe?

Se fizesse um paralelismo com o ciclo de vida do humano, diria que está na adolescência. Já se começa a questionar, a ter ideias e ambições, porém ainda não se estruturou nem se definiu, nem estabeleceram (ainda) as ligações suficientes para se tornar o colosso económico que pode, e virá a ser.

Muitos projetos de enoturismo não passam de uma loja, ou pouco mais. Não se corre o risco de defraudar consumidores e turistas?

É preciso fazer, errar, aprender com esses erros e fazer melhor. Temos hoje no Alentejo unidades de enoturismo de classe mundial que competem com qualquer região do mundo. Porém é preciso estar consciente que a produção de vinho é sector primário e o turismo é terciário, o casamento não é imediato nem simples. Porém sou um apologista que o maior risco é a inação… é preciso fazer e ir aprendendo ao mesmo tempo. Aqui as universidades têm de ser timoneiras. Por exemplo, a única universidade do Alentejo, a de Évora, não tem um curso de enoturismo, quando há uma escassez enorme destes profissionais na região.

O vinho é paixão ou ciência?

Ambas! O vinho tem de ter sempre por base um processo científico, replicável e que controla todos os eventos desde a uva até ao copo. O vinho é “só” um produto intermédio entre a fermentação das uvas e vinagre, sem intervenção tornar-se-á mesmo vinagre. Mas sem a paixão e visão de quem o produz, arriscamo-nos a ter vinhos sem história, sem alma e no limite sempre iguais.

O que é fundamental para um bom enoturismo?

Respeitar o famoso e tão em voga terroir que não é mais que a unicidade de cada sítio. Quem procura enoturismo quer autenticidade, quer sentir o que as pessoas que fizeram aquele vinho pensaram e sentiram quando o idealizaram. Também é necessário planeamento e organização. É que às vezes a autenticidade dá muito trabalho…

Quais as sub-regiões no Alentejo com maior potencial? Estremoz, por exemplo, dá por vezes a ideia de ser uma pérola à espera de valorização?

Sendo estremocense sou suspeito. Mas sim, Estremoz é um diamante por acontecer, ou melhor (usando a minha paixão pela geologia) apetece-me dizer que é um enorme bloco de carvão à espera da pressão certa para se transformar num diamante. Estremoz tem a maior concentração de adegas/ produtores de vinho de renome nacional e alguns até já internacional, nenhuma outra cidade portuguesa tem tantas adegas visitáveis num raio tão curto, ou seja o mais difícil está feito.

Que projetos de enoturismo mais o surpreenderam?

Em Stellenbosh, na África do Sul, tudo é em função do vinho, toda a cadeia de valor está aproveitada, toda a comunidade se posicionou para colocar o enoturista no centro e proporcionar sempre a melhor experiência/emoção, nada está ao acaso. Em Portugal, talvez a Herdade da Malhadinha Nova, pela visão que tiveram muitos antes da maior parte de todos os outros. Perceberam muito cedo que no enoturismo o vinho é só o ponto de partida, mas depois é muito mais que isso e criaram uma organização que compreendeu e responde aos desejos de quem os procura.

Nasceu em Estremoz, que memórias tem da infância e adolescência na cidade?

A minha infância foi igual à de muitos dos nascidos nos finais dos anos 70. Cresci com liberdade e sem grandes preocupações, numa cidade que tinha tanto de tranquila como de aborrecida. Numa cidade como Estremoz todos sabemos quem é quem, ainda assim tive uma adolescência discreta. Nunca me faltou nada essencial nem importante, mas os meus pais sempre foram humildes e com poucas posses. Por essa razão comecei a trabalhar com 15 anos, e sempre tive alguma inquietação e um desejo (às vezes quase como sentimento de culpa) de querer saber mais, de alcançar mais. Na minha família nunca ninguém tinha ido para a universidade e durante muito tempo não acreditei que pudesse ser eu a mudar esse fado.

Mas aconteceu.

Em 1997 entrei para o curso de biologia e geologia na Universidade de Évora. Apaixonei-me pela geologia, acabei a licenciatura em 2002 e iniciei de imediato o mestrado em cartografia geológica e fui assistente do Departamento de Geociências da Universidade de Évora e do Centro de Ciência Viva de Estremoz. Como as bolsas eram precárias, pensei em procurar outro trabalho, mas sempre com o pensamento na geologia e em ganhar algum dinheiro que me permitisse voltar e dedicar-me inteiramente. Em 2003 entrei como delegado de informação médica na indústria farmacêutica e nunca mais saí… fiz várias funções nacionais e internacionais, hoje sou diretor de uma unidade de negócio. Pelo caminho a curiosidade, a vontade de saber e alcançar mais nunca desapareceu, pelo contrário só cresceu… e em 2023 defendi o meu doutoramento em gestão, com especialização em marketing de vinhos, no Iscte.

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