Arquivo Digital do Cante. Seguindo os passos de Michel Giacometti

“Não basta gostar muito do Alentejo, e nada fazer por ele” diz Florêncio Cacete, criador do Arquivo Digital do Cante Alentejano. Alexandre de Barahona (texto e fotografia)

Esta conversa vem a propósito do Arquivo Digital do Cante, que foi oficialmente apresentado ao público durante a Ovibeja 2024, e onde foi feito o lançamento da plataforma digital. É uma associação que está na origem da ideia e que comanda a vida do projeto, à disposição do todos em www.arquivodigitaldocante.pt.

Durante um ano, Florêncio Cacete dedicou-se a contactar pessoalmente com 95% dos grupos de cante alentejano existentes. Foi um longo caminho, para conhecer in loco quem era quem e o que deles subsistia. E encontrou de tudo, desde grupos que eram só já um ou outro indivíduo, a outros desaparecidos que apenas constavam no papel, aos que continuavam cantando, até aos que tinham dado lugar a um novo grupo, provindo de um anterior por eles desconhecido.

“As pessoas surpreendiam-se quando eu me interessava pelos papéis, pelo espólio acessível e pelos inúmeros documentos salvaguardados” na posse de cada grupo. Ele próprio, depressa percebeu que seria um percurso mais árduo que o previsto. “Falei com vários intervenientes da área cultural, para saber quem estaria o meu lado e a verdade é que o meu conceito sempre teve uma grande aceitação”, revela Florêncio. “Mas isto na cultura, toda a gente diz para avançar, mas depois ninguém acompanha, sobretudo ao nível económico”, epiloga.

Florêncio Cacete é natural de Montemor-o-Novo e recorda que se trata de uma cidade, onde a cultura sempre esteve muito presente e divulgada junto dos jovens. Por esse motivo, desde cedo se sentiu atraído pela cultura popular, pelas artes tradicionais, e pelas questões da identidade e do território. É um apaixonado pela essência popular da nossa terra, estendendo-se de lés a lés, para aprofundar o conhecimento nos locais, do Cantar dos Jordões em Pias ou a Festa das Cruz na Aldeia Nova de São Bento, que nascem da população, ou como o cântico ao Horto das Oliveiras no Alandroal, por exemplo.

“São manifestações únicas, que devem ser partilhadas com outros, para nos darmos a conhecer, mas não se podem tornar alvo do turismo de massas, ou corremos o risco de serem adulterados”, acautela.

Sozinho nunca conseguiria levantar do chão tamanho projeto. As primeiras pessoas que desafiou foram Mariana Cristina, cantadeira no Grupo Coral Feminino As Ceifeiras de Pias, e a Joana Pereira, colega dele na Universidade de Évora. Atualmente são uma equipa de sete, com o Florêncio a dar a cara. O principal objetivo do arquivo é o de “salvaguardar a memória e a intervenção do cante, ao longo dos tempos”, explica, lembrando que “há grupos que datam oficialmente de 1926, embora saibamos que anteriormente eles já existiam, embora informalmente”.

O ponto de partida de um trabalho de investigação, vem sempre com as perguntas. As repostas devem ter fontes, que as corroboram e comprovam. Até hoje há trabalhos feitos do ponto de vista antropológico, mas é necessário muito mais que isso.

A recolha e documentação do cante alentejano, diz o responsável pelo projeto, “configuram-se como um investimento vital na preservação, valorização e promoção desta expressão cultural ímpar” pois “através da criação de um arquivo documental abrangente e da participação ativa das comunidades, será possível assegurar a salvaguarda deste património imaterial para as gerações futuras, garantindo a sua vitalidade e reconhecimento no panorama cultural português”.

É comum a imagem, retratando que os grupos eram constituídos por operários agríco- las. Será verdade? “Em parte, sim, mas encontrámos vários casos, em que os membros dos grupos, não eram trabalhadores agrícolas”, responde Florêncio. “Fazemos um trabalho subterrâneo que ninguém vê, e alguém me disse que seria um trabalho para a vida. Se o for não faz mal, valerá pena” reconhece o investigador.

A Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal) foi o primeiro organismo a dar algum apoio, através dos municípios da região. Todos concordaram em apoiar, apesar de não haver subsídios europeus para tal. “Foi fundamental essa comparticipação financeira e sobretudo logística, da parte destas municipalidades, e como são de diversas cores políticas isso também se reveste de grande importância”.

No âmbito da Universidades de Évora, uma vez informados, abriram-lhe os braços inúmeros departamentos, em particular com o Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedade (Cidehus). É um projeto que “tomou grandes proporções e isso assustou-nos um pouco, porque significa que há muitas entidades com grandes expectativas sobre os resultados do nosso trabalho”. No entanto tornou-se um facto assumido, e nada parece parar esta equipa de investigação.

“Já vi homens valentes a chorar e mulheres com olhares profundamente tristes, dada a ausência de apoio para manterem o desempenho do cante”, murmura Florêncio Cacete. O panorama geral pode ser confuso, pois apesar de o Baixo Alentejo ser a zona onde mais se difundiu o cante, muitas fontes comprovam a existência de grupos espalhados de sul a norte, por todo o território alentejano. E até no exterior do país, devido à migração das populações.

A associação que encabeçou este vasto estudo confirma terem em mãos cerca de 400 nomes de grupos de cante alentejano, pese embora possam existir algumas duplicações. Além disso, por vezes escasseiam os documentos. “Os Arraianos de Ficalho por exemplo, grupo que foi fundado em 1937, apenas são constituídos como associação em 1955. E ainda hoje muitos grupos de cante não têm personalidade jurídica própria”, diz.

Alguns estão ligados a outras instituições, como clubes sociais ou desportivos. Na esmagadora maioria trata-se essencialmente de grupo amadores, onde as pessoas trabalham e o cante é uma atividade extra. Contudo colocam-se questões sobre a possível profissionalização, sobretudo quando são envolvidos em grandes produções e com cantores de renome, como foi com o Pedro Abrunhosa.

A boa notícia é que ao celebrarmos o décimo aniversário do cante como Património Imaterial da Unesco, o nosso cantar está vivo e aconselha-se, com o nascimento de diversos grupos de jovens, exclusivamente dedicados ao cante alentejano. E essa é uma razão mais para que este trabalho de fundo, seja executado.

Foi positivo? “Sim criou uma expansão ao qual não estávamos habituados e revigorou muitos grupos que andavam moribundos”, confirma. No entanto, Florêncio Cacete alerta para o abuso que possa suscitar, por artistas que nada têm que ver com as modas alentejanas, e tentam utilizá-las para seu único proveito.

Vivemos uma época onde o vagar é pouco, e temos de ter cuidado com os atropelos. As tradições são fundamentais, no entanto saber fazê-las evoluir também me parece ser inevitável. Eis porque este Arquivo Digital do Cante, é tão importante ser encorajado e promovido: para que perdure o registo cultural das nossas gentes. E quem não se emociona ao ouvir aquelas sentidas vozes ecoar no coração? Quem não abre a goela e, a dado momento, os acompanha cantando? Só quem não for, ou não se sentir alentejano.

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