Artes plásticas: o imaginário fantástico da portalegrense Mané Pacheco

Artista contemporânea das criaturas híbridas e seres misteriosos, que nos assombram e seduzem, Mané Pacheco nasceu no Alentejo. Se assim não tivesse sido, sem lhe ter sido possível estar atenta aos ciclos da natureza, talvez a sua arte fosse outra. Júlia Serrão (texto)

Desenho, escultura, instalação, perfor- mance, fotografia e vídeo. A manifestação artística de Mané Pacheco não podia ser mais diversificada. Mas são sobretudo as peças em suspensão, as figuras esqueléticas, criaturas híbridas e seres enigmáticos que mais marcam esta fase da artista nascida em Portalegre, que recorre a uma multiplicidade de materiais orgânicos e sintéticos para lhes dar forma e construir cenários de um imaginário fantástico, que por vezes nos remete para universos e relações de dominação.

Toda a gente dizia que, quando crescesse, Mané haveria de estudar Belas-Artes, porque desenhava muito bem. Mas como não queria sair da cidade, pois tem “muito afeto” pelo lugar onde nasceu “e pela natureza”, decidiu enveredar por outros caminhos, quis ser veterinária. Desta forma, poderia ficar no Alentejo e “ganhar algum dinheiro na profissão”, pois estava convencida de que para se ser artista visual seria preciso “vir de uma posição privilegiada ou manter uma atividade paralela” que ajudasse a suportar as despesas. “O que não é totalmente errado”, frisa. “Na minha cabeça achava que nas horas livres iria pintar quadros”.

Acabou por entrar em saúde ambiental, que daria depois acesso ao curso de veterinária. Só que à medida que avançava nos estudos foi-se interessando pelas matérias ambientais: sempre acreditou que era importante “salvar o mundo e reciclar”, antes ainda de surgirem os contentores. Começou a fazer investigação e a colaborar com instituições de referência nestas áreas.

Trabalhou com entusiasmo no Grupo Lobo, de conservação da espécie, e em educação ambiental – o que ainda faz – transmitindo conhecimento sobre como combater as alterações climáticas e separar o lixo. “Esse universo começou a interessar-me”. Paralelamente, foi fazendo os cursos da Sociedade Nacional de Belas-Artes em horário pós-laboral, e lia muito sobre os artistas que lhe interessavam e sobre técnicas de desenho. Anos após estar a trabalhar na área do ambiente fez “uma viagem de mochila às costa” ao sudeste asiático. Quando voltou, não era a mesma. “Uma das coisas que decidi é que queria dedicar-me às artes”.

Voltou então à “estaca zero” na formação académica. “Foi o início de tudo”, nota Mané Pacheco, referindo-se ao ingresso na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em arte multimédia, com especialização em performance e instalação. Diz que a academia é muito importante na formação de um artista contemporâneo.

Ao longo da sua carreira soma muitas exposições individuais e coletivas em vários museus nacionais, no Centro Cultural de Belém (CCB), Culturgest, Espaço Fidelidade, sendo uma das artistas representadas na Coleção António Cachola, do Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE). De novo em “fase de transição”, pensa dedicar-se apenas à arte. “Não sei se é uma decisão definitiva, mas neste momento o que eu gostaria era de ser só artista plástica”.

Mané Pacheco vive em Lisboa, mas confes- sa-se atraída pelo campo e pelo contacto com a natureza, gosta de observar as aves e as árvores e identificar espécies, confessa precisar muito de estar no espaço exterior “mesmo para produzir”. A maior parte do seu trabalho é feita fora do atelier, no jardim. “Tal como sempre me interessei por arte, sempre me interessei muito pela biologia e pela ecologia”. O seu trabalho é a fusão perfeita desses mundos… ou paixões.

Aprendeu em belas-artes que a arte pode não estar relacionada com nada, “mas também pode ser uma forma de criar discurso”. Escolheu a segunda. “Achei que, com o meu trabalho artístico, poderia criar um discurso sobre o meu conhecimento ecológico. Ou seja, os conhecimentos de ecologia e ambiente informam como deve ser o trabalho artístico. Ele tem como interesse abordar um discurso, e eu normalmente faço isso através de materiais”.

O processo passa pela reutilização de material industrial e produtos naturais de que a utilização das crinas de cavalo é apenas um exemplo. Gosta de encontrar relações entre o “industrial e o natural”, e acha essa “contaminação” muito interessante. “Já usei ninhos de vespas, catos, agora estou a tentar arranjar ninhos de vespa asiática porque também está relacionado com um problema ecológico”, revela.

UMA ARTE MARCADA PELO ALENTEJO

“A dada altura”, conta Mané Pacheco, “percebi que a minha singularidade enquanto artista tinha a ver com o lugar de onde vim”. Poderia ter crescido em Portalegre, diz, e não se ter interessado por “olhar para as vacas e as cabras e desenhá-las”. Mas “foi crescer num lugar assim”, no Alentejo, que lhe proporcionou esse contacto e “uma aprendizagem única”.

Estava no Alentejo, com o marido e os filhos em casa de amigos, quando foi declarado o estado de emergência no âmbito da pandemia de covid-19. “Ficámos cerca de quatro meses em Mértola, o que para mim foi um reconetar com o Alentejo e o mun- do natural. Tanto em Mértola, como em Portalegre, há um lado mais selvagem”, garante.

Os passeios e um trabalho de campo todos os dias – para ver as salamandras e as aranhas – apaixonaram as crianças e inspiraram a artista plástica, voltando a sentir que a sua “singularida- de”, enquanto tal, era “vir do Alentejo, e que podia ter um discurso relacionado com isso”.

Se não tivesse tido oportunidade de observar esse mundo, não teria tido capacidade “de o transpor” para o desenho e para a escultura. “Quando faço o dorso do cavalo é porque já passei muitas horas a ver e a desenhar cavalos”. Conta que obrigava o pai a levá-la à coudelaria de Alter do Chão, uma e outra vez, quando era criança, porque queria perceber as ligações anatómicas dos cavalos.

“A minha arte deu uma reviravolta. A partir da minha estadia em Mértola comecei a trabalhar mais com a ideia de criaturas, de que podia transpor os bichos que sempre tinha desenhado, se calhar de uma forma mais académica, para a escultura, e fazê-lo de uma forma desconstruída. Se eu tinha facilidade em desenhar cabras ou cavalos, de repente também tinha facilidade em fazer uma escultura que fosse referencial a essa anatomia ou aos bichos, mas que não tinha necessariamente de ser um desses bichos. Não me interessa fazer réplicas. E então aí é que entra o interesse pela componente ecológica e pela crise ambiental emergente”. Sempre que pode regressa ao Alentejo, aos lugares que a inspiram.

Perante o que diz ser um desinvestimento “bastante expressivo” na arte e na cultura em Portugal, aponta a necessidade de uma reforma profunda a nível das artes e das instituições artísticas. Desde logo porque a arte “não pode estar só em Lisboa”, mas em todo o país. “A cultura tem de ter a capacidade de atrair as pessoas, e as pessoas também só vão interessar-se pela arte se conhecerem e tiverem curiosidade. É um bocadinho como a pescadinha com o rabo na boca”, nota Mané Pacheco.

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