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“As pessoas gritavam liberdade com um prazer quase louco”

Tendo sido avisado de véspera que a Revolução ia acontecer, o realizador Fernando Matos Silva, nascido em Vila Viçosa e à época a trabalhar para a RTP, foi das primeiras pessoas a filmar o 25 de Abril de 1974. Eis as memórias que guarda desses dias. Júlia Serrão (texto)

Fernando Matos Silva atendeu o telefone para ouvir Álvaro Guerra, escritor e jornalista do jornal “República”, dizer-lhe: “O jantar alentejano que nós tínhamos combinado é hoje, não é? Nós temos de começar a escrever o segundo filme, portanto começamos com o jantar”. A senha combinada entre os dois amigos, que faziam parte de um restrito grupo de civis ligados ao Movimento da Forças Armadas, significava que o plano para pôr fim à ditadura ia avançar.

O cineasta telefonou a avisar a mulher, e depois reuniu com a sua equipa, pois o objetivo era registar os acontecimentos do dia seguinte. “Comecei por explicar-lhes que ia ter uma conversa que implicava estar mais ou menos metido numa Revolução que iria haver, pelo que quem não quisesse estar envolvido saísse. Mas ninguém saiu. A equipa estava avisada para filmarmos, o que acabou por não acontecer porque não tínhamos uma máquina de 16 milímetros profissional. Acabei por ser só eu e o meu irmão [João Matos Silva] a filmar”.

Antes ainda tinham de ultrapassar a noite e a madrugada para confirmar que, de facto, a Revolução estava na rua e o regime vivia o seu estertor. Foram horas de ansiedade, marcadas por expectativas e receios, também por alguns imprevistos como adiante se verá, pois a tentativa de golpe de Estado (Golpe das Caldas), frustrada a 16 de março estava muito presentes.

Álvaro Guerra, José Martins Garcia, também escritor e jornalista do “República”, o cineasta e a mulher ficaram atentos à radio ligada sobre a mesa. Os pais de Júlia Matos Silva, que passavam uns dias com o casal, estranharam a troca da televisão pela telefonia, mas a necessidade de escrever o guião para um próximo filme serviu para justificar a mudança de ritual.

“A primeira senha que era para passar às dez da noite, só passou às cinco para as 11h00. Eram para aí dez e pouco tocaram à campainha. Era o meu amigo publicitário António Reis, com quem eu ia fazer um filme de publicidade, que vinha acertar as coisas comigo para as filmagens do dia seguinte”.

O PRIMEIRO JORNAL SEM CENSURA

Sentado à mesa, onde ao toque da porta tinham rapidamente espalhado papéis para tornar a reunião criativa mais real, Fernando Matos Silva mostrou-se indisponível e desculpou-se com o filme que tinham de escrever. “Ele achou estranho… esteve um bocado ali e depois saiu para nos deixar trabalhar.” O cineasta recorda que nesse momento estava a passar a canção “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, nos Emissores Associados de Lisboa. A primeira senha da Revolução.

“Estávamos a preparar-nos para o que vinha aí, quando tocaram outra vez à porta. Era um primo da minha mulher, bailarino no Teatro de S. Carlos, que vinha saudar os tios. Também esteve pouco tempo, pois tinha espetáculo no dia seguinte. Foi embora antes de passar a ‘Grândola, Vila Morena’, que só chegou à meia-noite e vinte.”

Quando o dia começou, lembra, e como o irmão vivia por perto, saíram os dois. Não conseguiram entrar no Radio Clube Português, pelo que foram para o Terreiro do Paço e para o Largo do Carmo. Filmaram sempre porque tinham cartões do “República” que os identificavam como repórteres do jornal, e Fernando Matos Silva conhecia muitos militares da sua passagem pelos Serviços

Cartográficos do Exército enquanto tropa. “O dia 25 de abril de 1974 é um dia de alegria. E a palavra mais dita nesse dia é liberdade. Realmente, liberdade é a palavra que tem todas as cargas e não tem nenhuma, porque não é uma palavra política no fundo. É a liberdade. E as pessoas gritavam liberdade com um prazer quase louco e fascinante. Também se ouvia dizer ‘abaixo o fascismo, fora com esses fascistas’… mas a palavra ‘liberdade era repetida num vozeirão imenso, que se ouvia em todo o lado”, recorda o cineasta. Aponta outros momentos e acontecimentos importantes desse dia, como o facto do “Republica” sair para a rua sem passar pela censura, sendo o primeiro jornal a fazê-lo. E a anunciá-lo nas páginas impressas.

A CATARSE DOS EX-COMBATENTES

Outra memória carregada de significado teve lugar no Largo do Carmo, a determinada altura cheio de gente, aquando do aparecimento de um helicóptero, que prendeu muitos olhos no céu. Entre a multidão estavam ex-combatentes que logo identificaram a aeronave como não sendo um helicanhão, um helicóptero armado, afirmando “‘está só a ver quantos somos. Nós sabemos o que isto é porque estivemos na guerra”.

Fernando Matos Silva diz que foi um momento “impressionante” e pleno de significado. “Também havia a alegria das pessoas que se estavam a livrar psicologicamente de algum peso. Que não foi total, porque há muitos problemas psicológicos na nossa população [de ex-combatentes] que nunca foram resolvidos”.

Já estava a caminho de casa, pois “tinha ficado sem película” para filmar, quando ouviu os disparos da PIDE sobre os manifestantes na Rua António Maria Cardoso, onde se situada a sede da polícia política. “Penso que já seriam sete e tal ou oito da noite. O Bairro Alto estava completamente vazio, porque tinha sido pedido às pessoas para não saírem de casa. Tenho o som dos tiros, da guerra urbana, na cabeça, da guerra de cidade que é a pior coisa que há… que é um eco terrível. E, portanto, eu ouço esse som pelo Bairro Alto adentro com as ruas vazias”.

Em casa, através das notícias que passavam na televisão pública, soube que a PIDE tinha disparado uma metralhadora e matado quatro pessoas.

“É terrível. E também porque é uma espécie de ‘não me digas que isto está a andar para trás’. Não estava, não era possível”. Recorda outro momento de apreensão durante a tarde, “em que houve uma tentativa fugaz da Guarda Nacional Republicana cercar mais ou menos o Largo do Carmo”, a que um major da cavalaria de Estremoz pôs termo, voltando-se para os seus soldados e dado ordem de colocarem a arma “à tiracolo”.

Já com uma máquina de filmar de 16 milímetros, Fernando Matos Silva registou nos dias seguintes, até ao 1.º de Maio, os grandes momentos que sucederam à Revolução dos Cravos, de que a libertação dos presos políticos é seguramente o mais emotivo. “Fomos os primeiros a filmar o interior da prisão de Caxias, e o interior da PIDE”, para o que havia de constituir matéria para o filme “Caminhos da Liberdade”, que realiza para a RTP. “Acabei o documentário no Barreiro, que era o centro da luta operária”, refere.

Nos anos subsequentes vai realizar programas importantíssimos onde se inscreve, por exemplo, “Nome Mulher”, que debatia “os problemas da condição feminina”, registando as ações mais emblemáticas das lutas das mulheres. Fernando Matos Silva que trabalhou com a jornalista Maria Antónia Palla para a série, recorda que o testemunho delas era “impressionante, falando com um à-vontade enorme para a câmara” mesmo de assuntos ditos tabus à época.

Já antes o havia constatado: “As mulheres eram muito mais livres do que os homens. Quando foi o 25 de Abril, as que calhava nós entrevistarmos eram muito mais livres, tinham uma força muito maior naquilo que diziam. Os homens, às vezes, fugiam a falar”.

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