Não, Carlos Fino não nasceu em Fronteira. Quis o destino que nos idos de 1948 a sua mãe fosse passar o Natal com os padrinhos de casamento, a viverem em Lisboa. Inesperadamente, no dia 24 de dezembro entrou em trabalho de parto. E o rapaz lá acabou por nascer na Maternidade Alfredo da Costa. “Foi um acidente”, desabafa o jornalista – não escrevo ex-jornalista pois esta é um profissão que se entranha. “Nada disso estava previsto, mas foi assim que aconteceu”.
Nascido, portanto, na freguesia de “S. Sebastian da Pedreira”, como elucida o certificado emitido em fevereiro de 1972 pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, é na vila de Fronteira que tem as suas “raízes”. Todas elas. Foi aqui que passou a infância e boa parte da adolescência, daqui saindo após completar o então 5.º ano, “pois não havia outra possibilidade” de continuar os estudos.
As memórias desse tempo são muitas. “Tenho recordações de tudo, desde as coisas mais triviais, como a escola, as brincadeiras na rua, os jogos com uma bola de trapos, e depois… ir tratar das oliveiras com o meu avô”. Avô que era proprietário da Pensão Central, na Rua da Lagoa, ali a dois passos do colégio onde também haveria de estudar. “Lembro-me de tudo, das primeiras letras que aprendi com a professora do pré-escolar, dos serões à lareira em cadeirinhas alentejanas, do começo da adolescência com o primeiro amor, o primeiro encantamento, aliás não correspondido”. Muitas horas passou o rapaz frente à casa de Rosa Maria e ela, bem, ela nem sequer aparecia a janela.
“E lá estou eu”, conta Carlos Fino, “lá estou eu a atravessar a parte feminina do colégio, porque os recreios eram separados, rapazes de um lado, raparigas do outro, para entregar à Rosa Maria um livro com amores perfeitos, perfumado, e o padre [Manuel] Baleiras vir e dar-me um grande puxão de orelhas e uma bofetada”. Castigo menos penoso que a indiferença da amada, ainda para mais sendo ele um artista com carreira já reconhecida. Artista? “Comecei tinha uns quatro ou cinco aninhos, havia um grupo de teatro amador na vila, no qual os meus pais participavam, e acharam que eu tinha alguma vocação para animar o público”.
Chegada a altura do intervalo, corrido o pano para mudança de cenário, eis o rapaz a declamar versos feitos pelo senhor Dominguinhos, que além de vender sorvetes tinha uma veia artística, como todos os alentejanos. Ou quase todos. “Não sabem quem eu sou/ Então aqui vai/ Eu sou o filho Fino/ Filho do Fino pai”. E, depois, mais uma poesia. E outra ainda. “A planta pode nascer ali ao lado, mas se eu a trouxer para este terreno ela é daqui”. E, sim, nascido em San Sebastian da Pedreira, Carlos Fino, “filho de Fino pai”, neto do dono da Pensão Central, é alentejano de Fronteira.
Tanto assim é que foi precisamente aqui, “na poesia do Alentejo”, com o varredor de rua a fazer versos ao alfaiate que morava em frente, e com este, também encenador do grupo de teatro, a ripostar igualmente em verso, com as pessoas que passavam na rua e com as outras que paravam na cozinha da pensão para dois dedos de conversa, com o professor da escola que ali se suicidou, com o velho republicano que chegava aos fins de semana com jornal “República” debaixo do braço a dizer que “até o Papa, até o Papa já diz mal do Salazar”, foi precisamente aqui que nasceu a sua vocação jornalística. Aquela que haveria de fazer dele um dos nomes maiores do jornalismo português.
Foi tudo isso e a Igreja. “A Igreja teve muita influência, não pela mensagem, desde logo porque ainda sou do tempo das missas em latim e não percebia nada. As pessoas estarem ali era toda uma formalidade, mas encantava-me a capacidade que o padre tinha de falar”. Não teria mais de seis anos quando entrou na Matriz de Fronteira, estando esta vazia, para espreitar o sacrário, “fiquei muito desencantado pois não havia segredo nenhum”, e para subir ao púlpito, olhando de frente toda aquela nave. “Encantava-me com a possibilidade que o padre tinha de falar”.
Já na pensão, junto à lareira, lembra-se bem de subir para uma cadeirinha vermelha, colocar às costas o avental das criadas, – “agora não se diz criadas”, adverte – e começar a “imitar o padre, declamando qualquer coisa, fingindo que falava latim, e depois pedia a Deus Nosso Senhor que trouxesse chuva para as favas do meu avô”.
Anos depois, novo “sinal dos céus”, no que à vocação jornalística diria respeito. Em meados da década de 50, a vila de Fronteira vive uma grande novidade tecnológica, com a instalação de um sistema sonoro na igreja – microfone no altar, umas colunas por ali espalhadas… e o deslumbramento do rapaz a aumentar.
“A participação na Casa do Povo, nos intervalos do teatro, o deslumbramento pela comunicação, tudo isso foi determinante para a minha vocação jornalística”. Isso, e também a “procissão de personagens” pela pensão dos avós, tal como a greve contra o trabalho de sol a sol nos campos do Alentejo. “Foi no final dos anos 50, a GNR a cavalo correu comigo para dentro de casa. Tudo isso se juntou para me empurrar para o jornalismo”.
Aliás, acrescenta Carlos Fino, a sua relação com os jornais já era intensa, pelo menos do ponto de vista do leitor. “Era eu que ia buscar os jornais perto da farmácia. A carreira da Setubalense parava ali, os condutores almoçavam na pensão e, junto com a carreira do meio-dia, vinha um molho de jornais que eu desembrulhava, distribuía pelos assinantes e também vendia. Cheguei a vender jornais”. Era o tempo da “República”, de “O Século”, do velho “Diário de Notícia”, de “A Bola”, entre outros. Títulos que distribuía, mas que também lia. “Lia umas notícias que me intrigavam muito, era só uma colunazinha escondida lá numas páginas interiores a dizer que o senhor fulano tal tinha sido preso e condenado no Tribunal da Boa Hora a não sei quantos anos de cadeia. Depois comecei a relacionar as coisas, a repressão política, e também ouvia muita rádio”.
A chegada a Lisboa, aluno da Faculdade de Direito, foi um “choque”, todo um mundo novo. Daí à sua participação da Associação Académica foi um instante, membro da direção com o pelouro das finanças e da propaganda, fazedor de cartazes, oposicionista ao regime, membro do PCP, em resultado “destas circunstâncias todas, da memória da miséria do Alentejo, da memória da perseguição aos trabalhadores no Alentejo, da memória da GNR a correr comigo para casa à espadeirada”. E também do cinema e da literatura, dos grandes autores russos, e do Partido Comunista Francês. Interrogado pela PIDE uma primeira vez, volta a ser procurado pelo inspetor Passos, ali onde morava, Castanheira do Ribatejo. A fuga dá-se por Chaves, passaporte falso, óculos “fundo de garrafa” como único disfarce. Depois o exílio, Paris, Bruxelas e o estágio de um ano na Rádio Moscovo. É lá que vive a Revolução de Abril. É lá que se desilude com o PCP. É ali que inicia toda uma vida dedicada ao jornalismo.
ABRIL EM MOSCOVO
Carlos Fino chegou pela primeira vez à então União Soviética em novembro de 1973. É ali que vive o 25 de Abril, “agarrado a um velho rádio militar russo”. Não o deixam regressar. “Entre a burocracia de cumprir o contrato e dar ensejo a um militante de desfrutar a alegria da liberdade para a qual tinha contribuído, a preferência foi para o compromisso com a Rádio Moscovo”, lamenta. “É uma mágoa que levo comigo”.