Tivemos no ano passado jornalistas em frémito, abertura de telejornais, entrevistas a consumidores esvaídos. Em suma, o preconceito à solta por, pela primeira vez desde que os fenícios trouxeram a oliveira do Mediterrâneo oriental para o ocidental, ter sido descoberto no campo um novo “el dorado”, agora líquido, com o qual estaríamos a desempobrecer e que, afinal, consistiria em simplesmente colher azeitonas para lhes espremer e vender o “az-zait”!
Em versão atualizada de uma cultura anti-sucesso que, aplicada à agricultura, surge frequentemente enfatizada por mal disfarçadas reminiscências do Processo Revolucionário em Curso (PREC) e da sua filha predileta, a reforma agrária, a alta do preço do azeite, por pouco, tinha sido assunto para, tal como o BES, a TAP, ou as “Gémeas”, merecer uma Comissão Parlamentar de Inquérito em esclarecimento à Nação.
Ora, tal como acontece actualmente no Japão com a escassez de arroz por más colheitas devido ao excesso de calor a fazer o seu preço aumentar quase 100%, também por cá foram simples causas naturais a estar na origem dos preços do azeite produzido na campanha 2023/2024.
Agora, apesar de ganhos de produtividade que, segundo o Gabinete de Planeamento, Políticas e Administração Geral do Ministério da Agricultura, foram de 15% na última campanha, vimos essa melhoria ser remunerada com perdas de valor superiores a 40% e, em minha opinião, serão muito pouco naturais as causas na origem deste fatal desequilíbrio.
Incrivelmente, apesar da dimensão desta armadilha, as nossas apáticas organizações não saíram da sua habitual brandura e se queremos algum incómodo ou alguma indignação institucionalizada por parte da produção temos que os importar!
Diz Jesús Cózar, secretário-geral da Unión de Pequeños Agricultores y Ganaderos da Andalucia (UPA): “Os olivicultores só em março já perderam 270 milhões de euros, oito milhões por dia, e não há motivos objetivos para os preços estarem tão baixos porque, considerando as reservas atuais, o valor pago aos produtores devia ser bem maior”. E, segundo um estudo das Universidades de Jaén e de Córdoba, em conjunto com o Instituto para a Pesquisa e Formação Agrícola e das Pescas de Espanha, existe um grave desvio de 2 euros/kg entre preço na origem do azeite extra-virgem e o valor que, nas atuais condições de mercado, devia estar a acontecer e que seria entre 5,55 e 6,1 euros/kg.
Por causa desta distorção de mercado, estima aquele estudo que até março os olivicultores espanhóis já teriam deixado de receber 626 milhões de euros e, representando 37% do sector agrícola espanhol, a Coordinadora de Organizaciones de Agricultores y Ganaderos apresentou uma denúncia formal à Comissão Nacional para o Mercado e a Concorrência de Espanha (CNMC) a solicitar um inquérito aprofundado e urgente para verificar se se estarão a verificar práticas que violem as leis da cadeia alimentar nesta acentuada quebra de rentabilidade dos olivicultores.
Conjugando a dimensão do atual recuo nos preços com o facto de, no ano passado, em reação à sua alta, quer a mão-de-obra, quer os fornecedores terem aproveitado para subir os seus preços para os mais elevados valores de sempre e, daí, grande parte deles não voltarem a descer, acabou a ser retomado o risco de abandono numa significativa parte da superfície agrícola ocupada pelos nossos olivais, com isso acentuando o êxodo rural.
Por exemplo, no Alentejo, segundo a Iberinform, o número de insolvências cresceu no primeiro trimestre deste ano com Portalegre a liderar todos os distritos do país (cuja média foi 28,8%) com um aumento de 350% face ao mesmo período de 2024, Beja a subir 133% e Évora 67%, a que se junta em Portalegre o facto de não ter sido registado no mesmo período qualquer pedido de constituição de novas empresas. Daquelas insolvências, a nível sectorial, os três maiores aumentos verificaram-se no Comércio e Retalho (36%), Transportes (68%) e Pesca, Caça e Agricultura (200%)!
Neste muito preocupante cenário, com quase um terço da área do país, somos por aqui já menos de meio milhão de pessoas e, segundo o último Censos do INE, numa década, agravámos o que agora chamam a nossa “baixa densidade” e perdemos mais 7% da população para os 30% de municípios que agora já concentram 80% dos residentes do país.
Apertados com os critérios ESG (ambiental, social e governança), grandes merceeiros e revendedores à procura de reabilitação social e de legitimação ambiental, operadores industriais em processo de ‘greenwashing’ disfarçado de integração vertical, especuladores avulso a canalizarem excedentes de caixa, bem como fundos de investimento e de capital de risco à procura de oportunidades para aplicações, todos cá pelo campo vão aparecendo para privilegiarem a massificação em detrimento do ‘terroir’. E isto, na exata medida em que recua a antiga e íntima ligação que famílias de agricultores mantinham com a terra e, como consequência, a têm que ir entregando para passar de vivida a explorada, num impessoal processo de financeirização que, depois de os descapitalizar, acaba a fazer dos agricultores reformados, assalariados e rentistas.
Pelo conceito, pelo aporte de tecnologia, mas sobretudo pela afetação de meios financeiros numa escala nunca antes vista por estas paragens, voltámos a assistir a uma concentração da exploração e posse da terra que não acontecia desde o tempo das Unidades Coletivas de Produção (UCP). Se esta concentração foi ilegal e aconteceu por via política/revolucionária, a atual é legal e dá-se por via financeira, mas carece do enquadramento político e da responsabilidade social a que a posse da terra sempre obrigou.
Historicamente, na pessoa do agricultor e, no período da reforma agrária, até mesmo na do revolucionário comunista na chefia das UCP, sempre alguém respondeu pela terra e a representou, mas agora, com o advento das multinacionais a insistirem na ficção de a considerarem uma mera mercadoria, aquela antiga relação passou por aqui a ser com marcas e com os difusos rostos dos seus funcionários. Acontece é que o resultado acaba sendo outra vez o mesmo: agricultores a serem removidos da paisagem e as comunidades rurais em acelerado processo de proletarização.
Claro está que estas são matérias que não configuram assunto que se compare à importância de, por ter estado mais alto o preço do azeite, ter havido consumidores na iminência da humilhação de começarem a temperar açordas com óleo fula. Por isso, não admira que o preço, agora bem mais baixo, do ouro líquido não seja já notícia.