Chama-se Lus 222. Primeiro avião português “ganha asas” no Alentejo

O Lus 222 estará a voar em finais de 2026. A garantia é dada por Miguel Braga, administrador da Aircraft and Maintenance, empresa que está a desenvolver o projeto. Toda a componente de engenharia está centrada no Parque do Alentejo de Ciência e Tecnologia, em Évora. A montagem será feita em Ponte de Sor. Trata-se de um investimento de 200 milhões de euros. Ana Luísa Delgado (texto) e Cabrita Nascimento (fotografia)

Quais os projetos no sector da aviação que estão a desenvolver no Alentejo?

De um lado temos o Lus 222, uma aeronave regional ligeira que é o produto que a Aircraft and Maintenance está a desenvolver. Esta aeronave integra a Agenda Aero.Next de Portugal, que é uma agenda mobilizadora para a industrialização, financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência, que integra cinco produtos e serviços e que tem um investimento de 123 milhões de euros, do qual mais de 70% se realiza no Alentejo. Além da aeronave regional ligeira, há o RX, da responsabilidade de um projeto liderado pela Takever, um drone para vigilância marítima e costeira, um novo produto que dá continuidade àqueles que a empresa já produz e comercializa e que vai tornar Portugal capaz de operar com outras condições que hoje não tem. Depois, temos o ET15, um drone para transporte de mercadorias em contexto de emergência médica, como órgãos, sangue, vacinas ou outros produtos deste género.

E os outros dois?

O quarto produto da Agenda Aero.Next é também um drone, que vai ser empenhado em trabalhos de manutenção de aeronaves de grande dimensão, permitindo desta forma otimizar os custos e o tempo de inspeção, projeto que é liderado pela Aeromec, que tem o hangar em Ponte de Sor. Há pouco esqueci-me de referir que a Takever tem as suas instalações no aeródromo da Ponte de Sor e que a assemblagem da aeronave regional ligeira vai ser feita em Ponte de Sor, tal como está a ser desenvolvida em Évora. Portanto, o eixo Évora-Ponte de Sor tem aqui uma dimensão de grande significado nesta agenda do PRR.

Há ainda um quinto projeto?

É da responsabilidade da LauaK, que tem as suas instalações industriais em Grândola e que tem a ver com desenvolvimento para a produção de prototipagem rápida numa empresa que produz peças para avião. São estes os cinco produtos e serviços que integram a agenda Aeronex de Portugal do PRR e que são muito centradas no Alentejo.

Voltando ao Lus 222. Em que pondo está o projeto?

A Aircraft and Maintenance tem dois acionistas, um puramente investidor e outro que além de investidor é responsável pelo desenvolvimento de engenharia de aeronave. É o CEiiA, que trabalha no sector aeronáutico desde 2009, que ao longo dos anos se tornou um fornecedor de serviços de engenharia dos maiores construtores aeronáuticos, em particular de helicópteros, e que durante os últimos anos, desde 2012, é responsável pelo desenvolvimento de dois terços da aerostrutura da aeronave KC-390, o maior avião já desenvolvida e fabricada pela Embraer, e de que Portugal foi o primeiro cliente NATO. O CEiiA é um grupo que trabalha no sector de aeronáutica, no da mobilidade e no do espaço, e o seu modelo de trabalho, de financiamento e organização passa por desenvolver produto ou serviço que, a partir do momento em que atinge um estado de maturidade que o torna viável, cria empresas, juntamente com investidores e outros parceiros industriais, onde fica centrado o desenvolvimento do produto.

É o caso do Lus 222?

É assim com a aeronave regional ligeira Lus 222, é assim com a Heliot, que desenvolve e vai comercializar o ET-15, é assim com a Geosat, que é um dos dois únicos operadores de satélites de muito alta resolução na Europa, juntamente com a Airbus, é assim com a Neo, que é uma participada do CEiiA que está a desenvolver e vai fabricar os dois primeiros satélites de muito alta resolução em Portugal. Este é o modelo. A relação entre o CEiiA e a Aircraft and Maintenance é muito forte, por isso é que o desenvolvimento de aeronaves deve ser feito em Évora, onde já estamos há 12 anos e onde temos uma equipa de 100 engenheiros que estão a trabalhar na fase de desenvolvimento de engenharia do avião, e aqui estarão até passarmos à fase de fabricação, que se centrará em Ponte de Sor, numa linha de montagem final que vai ser construída de raiz para montar esta aeronave.

Estamos ainda numa fase embrionária, é isso?

Não. Vamos lá ver. O desenvolvimento de uma aeronave é um percurso que demora anos, e nós já não estamos numa fase embrionária, estamos numa fase que se chama, em linguagem aeronáutica, de first preliminary design review… isto significa que o conceito da aeronave está fechado, e que vamos entrar na terceira fase de engenharia, o desenho de detalhe daquilo que já decidimos que o avião vai ser. Teremos o primeiro protótipo completo até final de 2026, para conseguirmos a certificação da aeronave durante o ano de 2028, momento a partir do qual poderá ser comercializada. Portanto, estamos exatamente dentro dos calendários que definimos há dois anos.

Para esta instalação em Évora foi importante a chegada, em 2012, da Embraer?

Évora é, por natureza, uma centralidade da indústria aeronáutica em Portugal. Hoje eu diria que temos duas centralidades, felizmente, e não apenas uma, e curiosamente as duas no Alentejo, juntando Ponte de Sor a Évora, face ao trabalho extraordinário que foi sendo feito pelo município de Ponte de Sor ao longo destes anos, que foi capaz de construir e equipar um aeródromo muito preparado, muito qualificado, do melhor que está disponível, e foi capaz de criar as condições para atrair investimentos. Por outro lado, Évora, arrancando com o investimento de Embraer em 2012, e mesmo sendo hoje uma fábrica maioritariamente da Aernnova e não da Embraer, obviamente isso teve aqui um efeito de lançamento da região, ou do município, para o sector aeronáutico, até porque a seguir à Embraer vieram outros investimentos.

Foi esse o contexto.

Foi e devo dizer que houve um fator muito relevante, e que deve ser dito: desde o início do processo, desde a fase em que foi preciso perceber se tínhamos ou não qualificações para desenvolver uma aeronave completa em Portugal, antes mesmo de percebermos e termos a certeza que se trata de uma aeronave que tem mercado, clientes e procura, houve uma entidade que acreditou desde a primeiríssima hora neste projeto, a CCDR do Alentejo, nas pessoas do anterior e do atual presidente e da equipa técnica que foram incansáveis desde o primeiro momento para criar as condições de arranque, porque o primeiro passo é sempre o mais difícil. Teve um papel determinante para que este caminho se pudesse ter sido iniciado e agora esteja em velocidade de cruzeiro.

Qual o valor do investimento?

O valor total do investimento estará apurado a meio do próximo ano, porque tem a ver com os componentes que a aeronave integra. A Aircraft and Maintenance é responsável pela engenharia, pela certificação e pela assemblagem, ou seja, pela montagem da aeronave. Todos os componentes são comprados. Procuramos que haja a maior integração nacional possível, sabendo que componentes como os motores ou o trem de aterragem não podem ser comprados em Portugal, porque não existe quem os faça. Da mesma maneira que os motores ou o trem de aterragem do KC 390 não são comprados em empresas bra- sileiras pela Embraer.

Tem uma perspetiva?

Estamos na fase de fecho de contratos com esses fornecedores, que terminará a meio do próximo ano e será nesse momento que saberemos em definitivo o valor do investimento. As projeções que temos, incluindo o investimento na construção da fábrica e nos equipamentos para montar a aeronave, e tendo já uma perspetiva do que são os componentes principais que vão ser adquiridos, porque são também os de maior valor, ultrapassaremos os 200 milhões de euros de investimento.

Em que ponto está o projeto da fábrica em Ponte de Sor?

O projeto de engenharia e arquitetura está mesmo em fase final, aqui tivemos um atraso de três a quatro meses, que teve a ver com decisões estratégicas de incorporar ou não na nossa infraestrutura o centro de manutenção, a cabine de pintura e o espaço relacionado com os testes estáticos. São decisões que estamos a tomar agora e que podem influenciar a área de construção.

Que tipo de avião será este?

Muito bem, o Lus 222 – já agora, [uma aeronave com] dois motores, dois mil quilómetros de alcance e dois mil quilos de carga transportada… sendo que Lus vem da designação de lusitano, de Portugal. Será uma aeronave regional ligeira que liga o ponto A ao ponto B para transportar até 19 passageiros, até dois mil quilos de carga e com um alcance de até dois mil quilómetros. Um avião que vai mais carregado tem menos alcance, um que vai menos carregado tem mais alcance, em função do combustível que é capaz de levar para além da carga útil. É uma aeronave multiusos, com certificação civil e com certificação militar, especialmente dirigida para missões das Forças Armadas, preparada para missões militares e de interesse público. É uma aeronave não pressurizada, com trem de aterragem fixo, e, não entrando em tecnicidades, o trem de aterragem fixo permite que aterre e levante em pistas não preparadas, o que significa que está preparada para levantar e para aterrar onde 80% a 85% das aeronaves dos outros segmentos não podem aterrar.

Porquê?

Porque as pistas são demasiado curtas, ou não estão preparadas, podem ser de terra, podem ser de pedra ou areia. Será uma aeronave todo terreno, no fundo, pois permite chegar a destinos que a maioria das outras não chega porque não pode aterrar. Quando queremos transportar pessoas ou mercadorias para um determinado destino, a que não é possível chegar por via ferroviária porque essa infraestrutura não existe, ou que por via rodoviária demora muito tempo porque a infraestrutura é rudimentar, a alternativa é podermos utilizar estas aeronaves. Para além disso, do ponto de vista militar, é preciso assinalar o papel crucial da Força Aérea Portuguesa, que é parceira do programa, que nos ajuda a sermos assertivos na configuração e especificação, que nos garante que, no fim, temos a aeronave que as forças aéreas pelo mundo inteiro precisam.

Para acorrer, por exemplo, a situações como as cheias ocorridas recentemente em Valência?

As Nações Unidas têm dezenas, se calhar uma centena de aeronaves com esta configuração. Existem no mundo muitas centenas com esta configuração. Estimamos que nos próximos 15 anos, até cinco mil aeronaves deste segmento terão de ser substituídas, porque as que hoje estão a voar terminam o seu tempo de vida, e porque quem as tem quer continuar a dispor destas aeronaves. Dá-se o facto, que não é uma coincidência, mas foi um critério de decisão, que a Airbus e a Embraer deixaram de fabricar aeronaves deste segmento para se concentrarem nas de maior dimensão, acima dos 150 passageiros. São empresas muito grandes, com estruturas de custos fixos muito consideráveis e para as quais não é rentável vender aeronaves que podem custar entre sete a nove milhões de dólares por unidade. Os grandes construtores, ao deixarem de estar neste segmento de aeronave, abriram uma oportunidade para novos construtores. E este é o espaço de oportunidade no mercado que a Aircraft and Maintenance e a Lus 222 quer trabalhar.

Já têm encomendas?

Temos quatro forças aéreas e duas empresas globais de transporte de carga com quem estamos a conversar. O que podemos confirmar ao longo dos dois anos que já passaram desde que decidimos avançar com este projeto é que o mercado confirma os pressupostos de negócio que nós definimos à partida com os estudos que fizemos. O que são os pressupostos que nos levaram a decidir por esta tipologia de aeronave deixaram de ser só estudos de mercado e passaram a ser confirmados pelos potenciais clientes, estando agora o desafio centrado na nossa capacidade de desenvolvermos e certificarmos a aeronave para sermos capazes de começar a entregar as primeiras aos clientes no prazo que eles definem como necessário.

Quando é que a podemos ver a voar?

O protótipo que lhe falo, de 2026, é o protótipo que vai voar. Portanto, a certificação das aeronaves é atribuída após o cumprimento de um conjunto de requisitos muito complexo e muito exigente de cumprir. A certificação civil é assegurada pela Agência de Segurança Europeia. O primeiro protótipo será para testes estáticos, o segundo, apontado para poucos meses depois do primeiro, será para testes em voo. A partir do momento que a certificação é atribuída, inicia-se a produção em série. A fábrica está pensada para 12 aviões por ano com um turno, tendo capacidade para dois turnos, o que permitirá duplicar, em função da procura, o número de aeronaves que são possíveis produzir por ano. Respondendo à sua pergunta, a aeronave que as pessoas têm curiosidade de ver estará ou está prevista estar disponível no final de 2026.

Quais foram as maiores dificuldades que encontraram para a materialização do projeto? 

Dificuldades que continuamos a encontrar. A primeira das quais refere-se a recursos qualificados. O sector aeronáutico vive um momento alto, de expansão a nível global, de procura e de desenvolvimento, e, portanto, a competição por recursos qualificados é grande. E competimos com os melhores, com países que têm condições para oferecer remunerações, que Portugal não tem. Felizmente temos tido a capacidade de atrair pessoas muito experientes, vindas de outros países, maioritariamente no Brasil. Trata-se de termos no interior, em Ponte de Sor e em Évora, salários mais altos, empregos qualificados, que obviamente têm uma influência na economia do município, na economia da região, porque o maior poder de compra permite que haja um efeito multiplicador em todos os outros sectores de atividade.

O problema é a habitação?

Temos procurado sensibilizar todas as pessoas com quem falamos… o primeiro-ministro, Luís Montenegro, esteve aqui connosco, vários ministros, vários secretários de Estado, e a todos temos passado essa mensagem, é um problema por resolver. O nosso esforço financeiro para pagar salários que sejam suficientemente atrativos, não só para contratarmos novas pessoas como mantermos as que temos cá hoje, tem um limite, e esse esforço financeiro está muito próximo, se não já mesmo, naquilo que nós podemos oferecer aos nossos colaboradores. Se no curto prazo continuar a haver uma subida dos custos de habitação em Évora, poderá tornar-se insustentável mantermos o projeto cá, porque não teremos pessoas para executar.

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