Cinema: “A vida inquieta de Chico Baião” estreia na Harmonia Eborense

Um documentário feito por um coletivo de jovens de Vila Nova da Baronia, concelho de Alvito, conta tudo sobre a vida e obra do músico da terra, fundador e vocalista dos Ortigões, uma banda rock dos anos 90. “Chico Baião – Serpente de Fogo” é a história de um homem muito à frente do seu tempo. Passa esta sexta-feira, à noite, na Sociedade Harmonia Eborense. Júlia Serrão (texto)

Inicialmente, a ideia, que surgiu numa conversa entre um grupo de amigos de Vila Nova da Baronia no verão de 2021, era “fazer um projeto” sobre os Ortigões. Por Ortigões entenda-se uma banda da terra, nascida nos anos 90, cujas canções permanecem na memória de muitas gerações. Por essa altura, ainda não se tinham cons- tituído como coletivo Barafunda, “focado em fazer projetos sérios”, comenta Filipe Carvalho, um dos fundadores.

O rumo do documentário mudou quando, na primeira entrevista que fizeram a um dos elementos da banda, Filipe Máximo lhes disse que se quisessem fazer um documentário sobre os Ortigões, primeiro, teriam de fazer sobre Chico Baião, o homem que tinha fundado a banda. “Aí percebemos toda a dimensão da história daquela pessoa que não conhecemos em vida. O Diogo [Tomás] e eu, que somos os realizadores do documentário, nascemos precisamente no ano em que ele morreu, em 2000”.

O objetivo passou a ser “homenagear o artista da terra” que foi a voz e a alma dos Ortigões, “e deixar um registo histórico”. Família e amigos próximos ajudam a construir a narrativa, com os seus testemunhos.

Manuel Francisco de Carvalho Baião, que ficou conhecido por Chico Baião, nasceu em Vila Nova da Baronia, em 1951. Quando tinha um ano, os pais mudaram-se para a Parede, concelho de Cascais, onde cresceu. Ainda assim, manteve sempre uma forte ligação com a vila alentejana, voltando em todas as férias escolares à casa do avô.

Estudou nos Salesianos, onde fez o liceu, e mais tarde ingressou em pintura e escultura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa (ESBAL), enquanto aprendia a tocar flauta e piano no Conservatório de Música de Lisboa. Também chegou a preparar-se para as provas de aptidão à licenciatura de arquitetura, mas foi chamado para a tropa. Ao que parece, não terá concluído nenhum dos cursos.

“A música era, de facto, aquilo que eu gostava, não a clássica, embora tenha tido bons professores no Conservatório”, diria em 2000, numa entrevista ao Boletim Municipal de Alvito. Por onde quer que passava, a “ideia” de Chico Baião “era ter um projeto musical”, adianta Filipe Carvalho.

Em 1973, quando é mobilizado para a Guerra Colonial, na Guiné, sendo explicitamente contra o uso das armas, sai de Portugal, e é dado como desertor. Só regressará ao país depois do 25 de Abril de 1974.

Inicialmente foi para a Bélgica, depois viajou por vários destinos europeus, tendo estado ainda no Norte de África. Nunca teve uma profissão fixa. Foi músico de rua e em bares, trabalhou como eletricista, e no campo, nomeadamente nas vindimas. “A minha preocupação não era amealhar dinheiro, era ir vivendo o que estava a acontecer por essa Europa fora”, diz na mesma entrevista, em que explica ter continuado “ligado à música e à arte de um modo geral”. Escreveu histórias e pintava, na Alemanha gravou o álbum ‘Blues Of This Moment’.

Testemunhos contam que terá feito também trabalho de roadie – isto é, montagem de palcos – de bandas internacionais, nomeadamente dos Rolling Stones. Algum tempo depois de ter saído do país, acompanhou a banda britânica numa tour por vários países, seguindo na sua própria carrinha com a namorada, Pureza Pinto Leite, com quem teve um filho.

Depois da Revolução de Abril não se fixa logo em Portugal, entrando e saindo do país com frequência, sendo que na primeira vez que pisou solo lusitano prenderam-no por ter desertado. Enfim, regressa a Vila Nova da Baronia, instalando-se com a família na horta que pertenceu aos avós: Úrsula (Uchi) Fechner, a mulher, de nacionalidade alemã, e os três filhos.

É aqui que, nos anos 90, Chico Baião vai realizar o projeto musical que sempre aspirou, fundando os Ortigões, com alguns músicos de Vila Nova da Baronia, Cuba e Beja, a que numa fase posterior se juntaram músicos de Évora. “Nunca foram uma banda fixa, aquilo girava sempre muito à volta do Chico”, nota Filipe Carvalho.

ROCK LIGADO À TERRA

A musicalidade da banda, diz, reflete a vida de Chico Baião pelo mundo fora, sendo possível reconhecer uma mistura de rock com folclore e sons africanos, em algumas sonoridades. As letras tratam essencialmente de problemas de natureza ambiental, como “o buraco de ozono”, o respeito pela natureza – com quem tinha uma relação umbilical –, o racismo, a guerra, e o combate à droga e ao álcool… “sem ser moralista”. Foi dependente até uma certa altura da vida, tendo depois cortado completamente com as drogas “pesadas” e com o álcool. O tema “Agora Tentar Deixar”, dir-se-ia um relato em que se compromete cortar com o vício, cantando: ‘Estou certo que me vou libertar’.

Quem o conheceu diz que era uma pessoa “muito vivida, muito evoluída, e muito à frente dos costumes da época” na defesa de valores que hoje estão muito na ordem do dia, nomeadamente as questões do ambiente e do clima. No testemunho que dá para o documentário ‘Chico Baião – Serpente de Fogo’, o músico Paulo Colaço descreve a música de Chico e dos Ortigões como “agro rock: a base é o rock, mas é muito ligado à terra, sendo um rock quase agrícola”.

Apesar de ter tido só sete anos de existência, a banda teve “um grande impacto na terra e na re- gião, sobretudo entre Évora e Beja”, comenta Filipe Carvalho, dando conta que o “mito” dura até hoje: “As gerações mais novas, incluindo a minha, continuam a ouvir os Ortigões e conhecem todas as músicas”.

Só publicaram dois álbuns: um da banda, o outro em parceria com uma banda de Évora. Fizeram muitos espetáculos por todo o Alentejo, concertos em Badajoz, e outro em Ílhavo. Em 1998, estiveram no Jardim das Estrelas, onde cantaram os temas “Pés Quentes”, “Agora Tentar Deixar” e “A Serpente de Fogo” – tema que dá nome ao documentário. Júlio Isidro, o anfitrião de um programa da RTP, na altura, apresentava-os como um grupo “que já teve várias sonoridades e formações”, cujas canções tinham uma “intenção social”.

Com a morte do autor, compositor e cantor, que muitos dizem ter sido “a alma e o motor dos Ortigões’”, a banda extingue-se. Chico Baião morreu em 2000 devido a um cancro no pâncreas. Segundo o corealizador do documentário, “não quis ser tratado pela medicina convencional”, preferindo manter-se fiel “aos seus ideais naturalistas”. Ou seja, “deixar a natureza seguir o seu rumo natural”. Tinha 49 anos.

O documentário sobre a vida e obra de Chico Baião contou com o apoio da ex-Direção Regional de Cultura do Alentejo, da Câmara Municipal de Alvito, do Município de Viana do Alentejo e da Junta de Freguesia de Vila Nova da Baronia. Estreou em Alvito, e está a ser mostrado noutras localidade do Alentejo.

Os jovens que o realizaram, e que hoje estão constituídos no coletivo Barafunda, começaram o projeto de forma “totalmente independente”, tendo depois recorrido ao crowdfunding, numa campanha de angariação de fundos através da internet.

COLETIVO NA CASA DOS 20

O “coletivo” responsável pelo documentário é composto por Filipe Carvalho, licenciado em Ciências da Comunicação, Diogo Tomás, em Cinema Documental, João Carvalho, responsável pela edição de cor e que ajudou na realização do documentário, e César Camacho que tratou da sonoplastia. Estão todos na casa dos 20 anos. Começaram a trabalhar no âmbito da “cobertura de alguns eventos da zona, com captação de vídeos e fotografias”, mas depois de “Chico Baião – Serpente de Fogo” têm ainda mais certezas: o que gostariam – e querem – fazer é documentários “ligados à terra”.

Uma resposta

  1. Excelente ideia.
    Excelente documentário, sobre a vida e obras do Chico, que conheci pessoalmente, numa fase da vida dele em que ainda estava bem e na fase terminal, o qual acompanhei até a sua última morada .
    O filme realizado é muito bom, já assisti pessoalmente o qual aconselho a ser visto por todas as pessoas que tenham essa possibilidade, pois relata a vida de um grande artista, acompanhado de sua família no Alentejo e que percorreu diversos países.
    Parabéns a todos que tiveram a ideia e a concretizaram.

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