Mulher, alentejana nascida e criada em Selmes, pequena aldeia perto da Vidigueira, terminou a adolescência em Cascais, onde se iniciou a trabalhar, seguindo uma carreira de bancária, como tantos na década de 80. Quis o destino que, casando-se, regressasse ao Alentejo, a Terena, bem antes do final do século. Em 2004 cessou a atividade, como empresária de uma loja de vestuário, decidindo abrir no mesmo local, a Rua de Serpa Pinto em Évora, uma casa de chá.
“Nunca aqui servi nenhum chá!”, confessa Esperança Barrocas, ainda admirada com as voltas que a vida nos dá. “Nessa época quem entrou e adorou o meu espaço foram os estudantes universitários, que rapidamente afluíram e aqui faziam tertúlias, com temas literários, académicos e, claro, com guitarradas, cânticos típicos do meio”. E o cante alentejano. Em vez de chá e torradas, servia vinho e linguiças assadas, afirma a gerente, fazendo notar que todos se comportavam lindamente e nunca teve problemas. Até que um dos estudantes, Duarte Coxo, vindo Arraiolos, lhe dá a ideia de transformar o seu espaço numa casa de fados.
Bem dito e bem feito. Esperança, que é daquelas mulheres de metro e meio, que não vira a cara ao trabalho, divorciada e com um filho pequeno para criar, arregaçou as mangas da camisa, como sempre fez na vida, empenhando-se no novo projeto caído do céu. Muitos a avisaram que seria uma loucura, para uma mulher sozinha, mas nunca teve problemas. “Nunca foi preciso chamar a polícia, em mais de 20 anos. As pessoas respeitam-me, e o ambiente é sempre muito caloroso”, diz a empresária, também fadista.
Durante muito tempo não queria ser apelidada de fadista, porque não cantara fado antes de abrir o Bota Alta. De início, apenas geria o negócio, os outros que tocassem e cantassem, que ela não se metia nisso. Mas aos poucos isso mudou, fruto talvez do hábito de ouvir cantar. “Uns e umas entendidas, outros levantando-se das mesas para entoar um fadinho, como se faz nas verdadeiras casas de fado. Com descontração e alma”. Naturalmente experimentou-se nas lides, encorajada pelas guitarras e pelas violas que acompanham esta nossa forma de canto, tão peculiar aos portugueses. “Jamais cantei fado, mas desde miúda que tenho um ouvido muito bom e afinado”.
Ouvido afinado também eu tenho, replico-lhe, mas daí a cantar é outra loiça. Provocada, faz um silêncio procurando nas memórias. Calei-me, deixando-a divagar sozinha, por épocas perdidas de um Alentejo de outrora. Uns minutos depois, voltando a si, partilhou o seu segredo: “Em pequenina, vivia em Selmes, e escutava ao colo do meu pai os cantares alentejanos. Não havia artistas, qualquer um cantava no Baixo Alentejo, e o meu pai fazia-o muito bem, de coração na garganta”, relembra-se a Esperança, com os olhos humedecidos.
“Recordo-me dele (o pai), depois do trabalho no campo, ir para as tabernas, como todos iam, e cantavam à alentejana. Conheço todo o cancioneiro, por causa disso. O meu pai gostava muito daquela moda da Trigueirinha, ai ai trigueirinha, lindo amor ser trigueira”, entoa a filha, ainda nas memórias dessa época.
O fado não a separou das origens do cante, desta sua infância. “Ainda hoje canto, e faço parte de um grupo de cante e de saias nas Hortinhas (Terena), chamado o Trigueirão do Rilheiro”. Quando se fazia a ceifa manualmente, com foices, juntavam-se pequenos molhos de palha e os pássaros iam fazer os ninhos nesses molhos. “É a isso que se chamam rilheiros. Lembro-me bem dessas ceifas, feitas durante a noite, ao abrigo do calor do verão”.
O cante na minha opinião, não era um género musical como nos fa- zem entender agora, somente a genuína expressão na história de um povo. Das suas crenças, temores e continuidade ao longo de séculos, entoado baixinho, no âmago dos corpos, protegendo-se do frio da geada e da fome na vida. Mas isto, é a minha opinião de leigo, embora testemunhos como este, me reconfortem nas raízes.
Passados 21 anos, a casa de fados na Rua de Serpa Pinto continua com a Esperança a abrir e receber fadistas, guitarristas, público português e estrangeiro.
O tal estudante que deu a ideia, de abrir a casa de fados, começou ali a cantar sendo hoje reconhecido no meio lisboeta. “Muitos fadistas iniciaram-se nesta casa, e depois abriram asas e voaram. E ainda bem”, diz. A casa proporciona um ambiente intimista, indicado para que o público em geral fique subjugado aos fados e à alma lusa, que ali se traduz. “Uma vez, um casal de turcos quis dançar. Outra vez, um casal de argentinos, já com alguma idade, perguntou se podia tocar. O velhote tocou maravilhosamente, descobrindo depois que era um célebre guitarrista sul-americano”.
Há amigos que costumam vir tocar e cantar num ambiente familiar do Bota Alta. Entre outros nomes, Inês Vilalobos, Lourenço Vaz da Silva, Francisco de Carvalho, António Vilalobos. Outros passaram por lá como João Núncio e o filho Filipe, a Mara e o Chambel, Felipe Duarte Silva e o seu filho Manuel. Enfim, um rol de artistas cantando e tocando, afirmando aquele local, como um ponto cultural da cidade. Em suma, sem igual, no panorama cultural eborense. Reconhecido internacionalmente, dada a quantidade de turistas que por ali passam.
Questionada sobre Évora_27 – Capital Europeia da Cultura, Esperança responde sem maledicência: “Não sei o que responder a isso. Ninguém me falou disso, mas a verdade é que estou habituada a que ninguém me diga nada”. Até parece que ali nada se passou, nos últimos 20 anos. Um dos pontos vivos da cultura portuguesa, privado, sem subsídios, nem quaisquer apoios, e uma mulher de armas abandonada ao seu destino. “Os anos têm passado e eu mantenho-me”, sustenta Esperança Barrocas. “Com muita dificuldade”, salienta, o preço da comida, da energia, tudo tem subido. E está muito difícil manter uma casa destas, aberta.
“Só gostava que olhassem para nós. Porque existimos”, segreda-me a fadista que recebeu algumas vezes Celeste Rodrigues. Uma senhora do fado, irmã do ícone Amália Rodrigues, que lhe confidenciou ser aquele tipo de casas “a essência do fado vivo em Portugal”.
Seria bom que os responsáveis por Évora_27, da própria edilidade e da entidade do turismo andassem menos distraídos, e olhassem para onde estão os valores culturais e as pessoas com uma vida de trabalho. E cessassem de dar subsídios sempre aos mesmos que passam a vida a pedinchar.