“Nunca parem de sonhar”, diz Alice Mancha às pessoas com quem se cruza, sobretudo aos jovens. “Não parem de sonhar”. No seu caso, o sonho levou 29 anos a concretizar-se, contados a partir do momento em que acompanhou uma tia à vila de Redondo e espreitou para o interior de uma oficina: “Estava lá uma cadeira destas, mas pintada de vermelho. Fiquei de boca aberta, aquilo saltou-me aos olhos”. Ao regressar a casa manifestou à tia o desejo de aprender a pintar daquela forma, tradicional. E acabou por aprender, quase três décadas depois. “Foi um sonho realizado, um sonho de infância que não morreu. Os anos foram passando, nunca esqueci aquela cadeira e aqui estou”.
O aqui é a sua casa, também oficina, na Aldeia da Venda, concelho de Alandroal, onde é procurada por gente “vinda de todo o lado”, sobretudo pelos “novos moradores” que se têm instalado na região, não dispensando um “toque alentejano” no momento de mobilar a casa. Entre o deslumbramento dessa pequena viagem com a tia e a aprendizagem da arte, Alice Mancha casou e acompanhou o marido que, por essa altura, trabalhava em São Miguel, nos Açores. “Foi para lá solteiro, depois comprámos uma casa mais pequena do que esta, casámos e depois fomos os dois”. Tinha 25 anos e trabalhava na costura. “Até aprendi a falar à moda de lá, fiz grandes amizades”, conta.
O regresso à Aldeia da Venda deu-se 12 anos depois. Quis o destino que por essa altura estivesse a abrir o Centro Regional de Formação de Artesãos, em Reguengos de Monsaraz, ali a “dois passos” da aldeia. “Havia um curso de pintura de móveis de madeira, inscrevi-me e lá fui. Fui a única pessoa que se inscreveu com o intuito de aprender, as outras estavam lá mais pelo ordenado, pois sempre se ganhava o salário mínimo. Também fui a única a continuar esta arte”, assegura.
Desse tempo em Reguengos de Monsaraz, Alice Mancha recorda os primeiros desenhos, ainda em papel – “já na escola, quando a professora nos mandava pintar, o que eu desenhava eram flores, sempre flores, mesmo que também houvesse uma casa ou um banco” – e a vontade de praticar, o que a levava a correr para as aulas de carpintaria, empalhamento e pintura. Foi aí que aprendeu a técnica. A arte foi-se aperfeiçoando ao longo dos anos.
“O que pinto”, diz a artesã, “são flores de alandro”, a planta arbustiva também conhecida como loendro que deu nome ao concelho de Alandroal. “Todo este mobiliário alentejano é pintado com flores. Uso sobretudo cinco cores, azul, preto, branco, verde e encarnado. O amarelo serve apenas para destacar… pronto, é a tradição. Se uma pessoa aqui chegar a quiser uma cadeira pintada de cor-de-rosa também o posso fazer, mas a exposições só levo o que é genuíno, tenho empenho em manter a tradição”.
Além de cadeiras e de mesas, Alice Mancha pinta “de tudo um pouco”, incluindo móveis, braseiras antigas, “ficam lindas para decorar uma casa” ou potes de azeite, “que se usavam antigamente, quando as pessoas compravam azeite para o ano todo e quando não havia tanto plástico”.
O restauro é outra das suas apostas. “Chego a ir buscar peças à portas das pessoas, peças que iriam para o lixo, mas a que dou uma nova vida. Costumo dizer que gosto muito de restaurar uma peça porque estou a dar vida a uma coisa que estava morta”.
Quando à arte, essa, tem um futuro sombrio, até por ser a única artesã a pintar móveis no concelho de Alandroal e uma das poucas a fazê-lo na região. “Já não sou nova, daqui a uns anos as mãos vão-me começar a tremer e uma mão trémula não serve para isto. O problema é que ninguém quer aprender… e eu que gostava tanto de ensinar”, conclui.