Cosmogama de Genebra para Évora. Há um novo projeto artístico na cidade

Estrutura artística e cultural europeia assenta arraiais no Alentejo. Alexandre de Barahona (texto e fotografia)

Antigamente eram as andorinhas e cegonhas que anunciavam a primavera, o período estival. Agora que em parte essas aves permanecem no Alentejo, são os falares forasteiros, as sandálias e óculos de sol invadindo as ruas, que o fazem. Quantos desses turistas passando por entre nós, resolverão pela paixoneta que a nossa região lhes causa virem um dia a instalarem-se por cá? Foi o que aconteceu a estas pessoas, que depois de várias viagens, assim decidiram.

A sua originalidade não reside no que acabei de ilustrar, mas antes no meio profissional que operam. A sua organização é de teor estritamente cultural e chama-se Cosmogama. Divide-se em duas faces de uma mesma moeda, uma que dá a cara como um estúdio de artes gráficas e visuais, a outra assumindo-se ser a coroa com um atelier de criação de formas artísticas, umbricamente conexa a artes cénicas e da produção escrita, as duas respirando como uma só e abertas a prosseguirem explorando distintas formas de expressão.

A primeira ilumina-se através de Jeanne Roualet, formada em design e arte visuais, a segunda alicerçada em Fabrice Melquiot, encenador e escritor, ambos franceses, ambos instalados na cidade de Évora há três anos.

Vêm de França, mas foi na Suíça em Genebra, que souberam alargar horizontes e criar raízes na comunidade artística europeia. Adoraram visitar Portugal, em particular a cidade de Évora, e por isso a escolheram, para dar seguimento ao projeto. A realidade com que se depararam por cá foi outra daquela a que estavam habituados. Contudo mantêm-se motivados, acreditando que pode ser um centro de cultura europeu.

Claro que o Évora 27 não escapa imune a essa convicção, e, portanto, não poderia ser um tema à margem da nossa conversa. Confirmando a relevância do futuro evento, com a experiência que trazem na bagagem rapidamente advertem que “se apenas for um conjunto de exposições e ocorrências culturais e depois nada restar, seria uma pena e desperdício”, diz o encenador, “confiamos que serão implantados projetos estruturais, que perdurarão no tempo pós 2027, mantendo a cidade de Évora na rota de uma vida e vinda de pessoas, a interagirem e a apreciarem as artes e a história na região”.

Naturalmente, estabeleceram ligações fortes com a Paula Garcia e a cabeça do Évora 27, no entanto apercebendo-se da precariedade económica do tecido cultural português e em particular do alentejano, mostram-se categóricos em recusar “serem mais uns, a procurar fontes de rendimento dos dinheiros públicos nacionais. Esse dinheiro deve destinar-se na sua maioria, aos agentes locais. Nós saberemos manter um sistema autossuficiente, para não ajudar a esgotar esses recursos”, defende Jeanne, até porque a Cosmogama mantém a sua atividade em França e na Suíça, além de outras nações do velho continente.

Os dois são um casal ou melhor “uma família”, reforça Fabrice, aludindo ao passado de ambos e aos seus filhos. De França passaram para a Suíça, onde permaneceram uma dezena de anos, em Genebra e estabeleceram um profícuo trabalho, com ramificações nos meios artísticos europeus.

A estes junta-se Camille Dubois, também ela francesa, vinda do cinema, teatro e comunicação, que justamente há cerca de 10 anos trabalha no seio da Cosmogama, nomeadamente no suíço. São um triunvirato, uma espécie de três mosqueteiros que desenharam um projeto convergindo no Alentejo, para abrirem diferentes fronteiras culturais, onde querem que uma Europa cultural se entrelace com Portugal, mais especificamente no Alentejo.

“De início surpreendeu-nos constatar que aqui as pessoas têm um ritmo diferente”, confessa Camille, “não é necessariamente negativo, é uma característica própria, à qual nos adaptámos e hoje compreendemos”. A parte mais drástica é a falta de investimento na cultura, “os meios económicos são escassos, para mais quando comparados com a Suíça, onde todos os excedentes são diretamente consumidos na cultura”, esclarece a francesa, que se vê como o canivete suíço do grupo, de tal forma se desmultiplica em tarefas e responsabilidades várias, “aqui cada um tenta fazer o que pode, com o pouco que consegue ter, e sou muito sensível a isso porque gera uma solidariedade surpreendente, a que não estamos habituados ver noutros locais”, conclui, feliz por se ter instalado em Évora.

Em termos concretos, a inauguração de um espaço próprio situado junto à Praça do Giraldo, que foi por eles adquirido e durante dois ou três anos usufruiu de obras, é uma das suas primeiras afirmações e que muito em breve poderá ser visitado. “O previsto, seria abrir ao público no mês de junho 2024, com exposições e eventos artísticos”, assegura Jeanne, apesar de olhar para as abóbadas e admitir ter receio que os trabalhos finais das obras, sofram atrasos. Nada de novo, para nós. (ver o Alentejo Ilustrado online, para se manter ao corrente, sobre este e outros temas, com notícias diárias).

Por outro lado “vamos levar a cabo um encontro internacional de escritores, um atelier onde os autores virão de vários países e no Teatro Garcia de Resende, poderão desenvolver as suas aptidões de escrita criativa”, revela Fabrice, que é um nome conhecido na cultura francófona, e tem acordado encenar uma peça de Shakespeare naquele teatro eborense, com o CENDREV. “Trata-se de uma adaptação de Otelo, que fiz e iremos levar a palco daqui a alguns meses” diz o escritor e encenador.

Jeanne diversificou os seus contactos em redor de Évora, para intervenções públicas, como foi o caso com o Paulo, que manualmente faz tijolos ou ainda na cerâmica, o António, de Montemor-o-Novo, da empresa Logos.

“É importante aproveitar quem é da região, para desenvolvermos trabalhos em conjunto, porque eles têm o conhecimento e são a expressão viva da cultura regional. Nós vimos para acrescentar, não para impor”, esclarece Jeanne. Ao que Camille completa dizendo que “estamos conscientes de que por vezes, os estrangeiros chegam a uma região e querem impor a sua visão das coisas, nós na Cosmogama, não. Queremos aprender convosco, estar à escuta e conseguirmos ser parte do tecido, porque é também isso que nos enriquece culturalmente. E nesse sentido, que o tempo passe mais lentamente como aqui no Alentejo, ajuda-nos”.

Em final de conversa, o tema de Évora 27 regressou à baila, confirmaram que têm dois projetos já aprovados pela comissão organizadora. Além disso “temos algumas outras propostas, que faremos para o ‘open call’, e que poderão até ficar, como marcos na cidade”, revelou Jeanne. Que destas organizações possam vir até ao Alentejo diversos artistas, é uma promessa, “é perfeitamente natural e está prevista essa partilha, sim” assegura Jeanne. E levar lá os nossos? Pergunto. “Também sim. Mas levará sempre algum tempo, porque estamos ainda a começar aqui. Temos de construir, e passo a passo certamente conseguiremos essa ponte nos dois sentidos”.

E são pequenas joias como estas, que, de perdidas em passados passeios turísticos, um dia se encontraram e retornaram até nós, alentejanos, desejando aqui permanecerem. Isso transforma a nossa sociedade alentejana, transferindo-nos outra visão, diferentes liberdades e experiências, para juntos sermos mais fortes, mais unidos. Saibamos aproveitar, escutar e colaborar em uníssono.

AUTOSSUFICIÊNCIA

Fabrice garante que a Cosmogama tem “consciência das dificuldades financeiras do meio cultural português” pelo que uma das apostas é “sermos autossuficientes, para não irmos buscar apoios destinados aos agentes culturais portugueses”, A companhia continua a desenvolver projetos próprios em França e na Suíça. Fabrice Melquiot estava, aliás, de partida para França, onde mantém toda uma estrutura própria a funcionar, produzindo e dirigindo espetáculos.

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