Opastor sai cedo com o rebanho, como sempre fez. O cajado acompanha-lhe o passo, os cães vigiam os flancos, e as ovelhas espalham-se pelo campo, sabendo que há tempo para andar e tempo para voltar. Mas hoje, há algo mais no bolso do pastor: um ‘smartphone’. E com isso, sem dar por ela, também ele já não é só homem do campo: é um pouco máquina, um pouco rede, um pouco digital.
Nos dias de hoje, o mundo não se divide apenas entre o que é físico e o que não é. Há algo a meio caminho, um espaço onde o real e o tecnológico se misturam. Chamamos-lhe digital. É diferente do virtual, porque o virtual nunca precisou de existir para ser. No jogo do FarmVille podemos ter uma ovelha, podemos tosquiá-la e até dar-lhe feno, mas aquela ovelha nunca saltou uma cerca, nunca sentiu o vento na lã nem mastigou erva fresca.
O digital é outra coisa. É quando se colocar um badalo inteligente numa ovelha de verdade e, de repente, sabemos exatamente por onde ela anda quando sai para o pasto. É físico, mas conectado. É real, mas alimenta-se de dados. A confusão entre o que é digital e o que é virtual não é nova, mas faz toda a diferença. O digital não substitui a realidade, expande-a.
Um pastor que usa um GPS para encontrar uma ovelha perdida continua a ser pastor, mas também é um pouco mais do que isso. É um ‘cyber-pastor’, tal como o Arnold Schwarzenegger era um ‘cyborg’ no filme “Exterminador Implacável”, meio homem, meio máquina.
O mesmo se passa com os outros que não guardam rebanhos. Se um agricultor digitaliza o “Borda d’Água” e o guarda em formato PDF no telemóvel, tem sabedoria digitalizada, ou seja, a tradição é convertida em ‘bites’ e ‘bytes’, mas ainda é a mesma. Mas se usa uma aplicação que cruza dados meteorológicos para saber se vai fazer frio e se vale a pena levar a samarra, isso já é digital.
Quando um olivicultor usa um drone equipado com sensores térmicos para monitorizar a humidade do solo e otimizar a rega, ou quando o Manel, atrasado para o jantar, faz uma videochamada à Maria para lhe mostrar que ainda está no campo e não no café, tudo isso é digital.
O campo continua lá, o trabalho continua físico, mas agora existe um elo invisível entre os homens e as máquinas, entre os campos do Alentejo e a tal nuvem que guarda tudo de todos, onde quer que ela esteja.
O desafio do digital é que não basta existir, tem de fazer sentido. O pastor pode ter todos os sensores, mas se não souber onde levar o rebanho, os dados de nada lhe servem. A tecnologia precisa de nos dar mais controlo, não de nos fazer perder a noção do essencial. A sabedoria continua a ser a mesma: saber para onde ir, quando ir e como cuidar do que é nosso. A diferença é que, agora, talvez consigamos fazer isso com um pouco mais de precisão e um pouco menos de incerteza.
Afinal, seja com um cajado ou com um smartphone, seja com cães ou com algoritmos, há uma coisa que nunca muda: um bom pastor nunca deixa uma ovelha para trás.
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