Adieta mediterrânica é muito mais do que uma escolha alimentar. É uma forma de estar no mundo, com raízes históricas profundas, uma ligação íntima entre a Terra e o ser humano e uma resposta atual às grandes preocupações da humanidade: sustentabilidade, saúde pública e identidade cultural. Quem o afirma é Jorge Queiroz, sociólogo, especialista em património cultural e autor do livro “Dieta Mediterrânica – Uma herança milenar para a humanidade”, cuja terceira edição, revista e aumentada, foi agora publicada pela Âncora.
Por dieta mediterrânica entenda-se o consumo elevado de alimentos de origem vegetal, como legumes, frutas, cereais, leguminosas ou ervas aromáticas, o uso predominante do azeite como principal fonte de gordura, o consumo moderado de peixe, aves e laticínios, menos ainda de carne vermelha, e vinho de forma moderada, sobretudo às refeições. Mas também, o aproveitamento dos alimentos da época, respeitando os ciclos da natureza, a adoção de práticas culinárias simples, com pouca transformação dos ingredientes, e a mesa entendida como tempo de convívio e de partilha.
Um bem inscrito pela Unesco, em 2013, na lista de Património Imaterial da Humanidade, ainda que não tenha “o apelo comercial imediato” de outros bens classificados como o fado, “muito ligado à indústria discográfica, com rostos conhecidos e grande visibilidade mediática”. Ainda assim, sublinha o autor, “está muito bem situada a nível das universidades, das áreas científicas, da nutrição e da agricultura sustentável”.
A candidatura teve um carácter transnacio- nal, envolvendo sete países: Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Croácia, Chipre e Marrocos. “Pessoalmente prefiro esta lógica de partilha. Foi uma candidatura de conjunto, com países da margem norte e sul do Mediterrâneo, o que é vantajoso e enriquecedor”, refere Jorge Queiroz, lembrando alguns dos “avanços” que a classificação pela Unesco trouxe: “foi integrada nos currículos escolares do ensino básico e há um protocolo com 19 universidades, coordenado pela do Algarve, para valorizar este património e aprofundar a investigação, não só do ponto de vista nutricional, como no campo cultural”. O autor reconhece que há caminho por fazer. “Não vi muitos restaurantes com indicação de seguirem a dieta mediterrânica. Mas vi, noutros países, alguns sinais indicativos em aeroportos ou em grandes superfícies comerciais”.
“Tem muito a ver com tradições, com formas do homem se relacionar com a terra, com as questões de harmonia entre o homem e o território. E, de certa forma, isso colide com de- terminados interesses mais ligados à indústria agroalimentar, à produção intensiva e à grande distribuição. É um modelo que valoriza o local, o sazonal e o simples, enquanto o mercado promove o oposto: o uniforme, o processado, o disponível todo o ano”, refere.
Ainda de acordo com Jorge Queiroz, trata-se de uma prática profundamente enraizada em saberes antigos. “Os romanos, os fenícios, o mundo islâmico, todos eles construíram formas de viver que estão na base deste modelo. Está tudo nos textos de Plínio o Velho ou de [Pomponius] Mela [geógrafo], na forma como se relacionavam com a terra”.
O Mediterrâneo, escreve o autor, “é um work in progress, escultura na história humana”, onde “a beleza dos lugares e das heranças patrimoniais nos fazem esquecer a luta pela sua construção”, na qual se inscreve o “esforço gigantesco de muitas gerações” para a produção de cereais.
“Os cereais e o pão constituíram desde sempre uma base alimentar; a fermentação e o calor aumentavam o volume e o valor do alimento”. Antes, praticava-se uma “agricultura itinerante” com o derrube de matas, queimadas e plantação de sementes. “Esta itinerância era acompanhada pela recolha de frutos silvestre, como castanhas, bolotas e figos, que serviam de alimento para pessoas e gados. O medronho era aproveitado para a produção de aguardente, como ainda hoje ocorre”.
Depois, o cereal moído, transformado em farinha, “A permanente insuficiência de trigo” – regista Jorge Queiroz – “constituiu o principal problema alimentar das gentes, ocupou a atenção dos soberanos, de cortes e diplomatas, impôs muitas vezes a necessidade de importar e constituir reservas”.
A par da oliveira e do vinho, cujo fabrico em talha ainda hoje se pratica em várias zonas do Alentejo, os romanos “desenvolveram uma profunda revolução na paisagem com a introdução intensiva das culturas cerealíferas”. E os suevos, entre os séculos IV e VIII depois de Cristo, haveriam de introduzir a cultura do centeio.
No ciclo do pão e das culturas cerealíferas, regista o autor de “Dieta Mediterrânica”, surgiram diversas profissões, complementares entre si. “Neste ciclo” – acrescenta – “o camponês lavra os campos e aduba, faz as sementeiras e, com o calor, as ceifas; o moleiro transforma os cereais em farinha; o padeiro mistura farinhas e amassa; as ‘forneiras’ ou ‘chameiras’ transportavam e colocavam o pão nos fornos públicos”.
Ao longo de diversas épocas, e em várias regiões, “era a mulher quem peneirava as farinhas, preparava a massa na massadeira e a levava ao forno num tabuleiro, obtendo os pães para a família”. E na alimentação portuguesa, na alentejana em particular, o pão “surge nas sopas, em açordas, migado associando-lhe um ‘conduto’ para dar sabor”.
Numa obra onde “revisita” os autores clássicos, Jorge Queiroz é perentório: “A dieta mediterrânica enquadra-se em valores culturais milenares, normativos filosófico-religiosos, métodos e tecnologias ancestrais, experiências de agricultura adaptada aos solos e clima, conhecimentos da medicina e da nutrição, tradições transmitidas de geração em geração”.
Práticas assentes na “tetralogia mediterrânica”, assim definida pelo escritor, enólogo e gastrónomo Alfredo Saramago, recordado por A. Galopim de Carvalho no prefácio a esta terceira edição. Dessa tetralogia, sublinha A. Galopim de Carvalho, “apenas o azeite e o vinho têm alcançado desenvolvimentos [no Alentejo], com importância considerável na economia nacional, com expressão no mercado externo”. De resto, as áreas de cultivo de cereais, sobretudo trigo, têm vindo a decrescer, e o porco de raça alentejana, criado no montado, teima em resistir, graças ao esforço de algumas dezenas de produtores.
“No presente, muitos hectares de montado são, ainda, uma garantia às necessidades dos tempos que correm, mas o futuro é incerto e preocupante, tendo em conta a rarefação deste sistema agropastoril. A alimentação desta nossa raça com cereais e farinhas vai, certamente, mudar-lhe a características que a tornaram um produto natural de excelência”, lamenta o autor do prefácio.
Nascido em Lisboa e a residir próximo de Montemor-o-Novo, Jorge Queiroz concebeu e acompanhou projetos de reconhecimento e valorização das culturas mediterrânicas e do património cultural, tendo sido responsável técnico do processo de candidatura da dieta mediterrânica a Património Imaterial da Humanidade, aprovada em Baku, no Azerbeijão, a 4 de dezembro de 2013.

“DIETA MEDITERRÂNICA – UMA HERANÇA
MILENAR PARA A HUMANIDADE”
Jorge Queiroz
Editora: Âncora
283 páginas, 20 euros