Da pacatez da vida no velho burgo a milhares nas ruas, como Estremoz viveu Abril

Se a 25 de abril a pacatez da vida em Estremoz “não sofreu alteração que se visse”, nos dias seguintes milhares de pessoas estavam nas ruas, primeiro para receber o Regimento de Cavalaria 3, participante no golpe militar, depois para celebrar o 1.º de Maio. Luís Godinho (texto) Blogue "Do Tempo da Outra Senhora"/Hernâni Matos (fotografias)

A Revolução de Abril chegou às páginas do “Brados do Alentejo” na edição de dia 5 de maio, a segunda depois do golpe militar que derrubou a ditadura. “O barco mudou de timoneiro e de rumo”, escreve o jornal na primeira página, num texto que apesar de não assinado não teremos hesitação em atribuir ao então diretor, André Tavares. Já lá iremos.

Antes, passemos os olhos pelo artigo “Estremoz e o Movimento das Forças Armadas” no qual se relata a forma como a cidade viveu a chegada da democracia. “Estremoz”, escreve o articulista, “acordou no passado dia 25 alvoroçada com as primeiras e um tanto confusas notícias que lhe chegavam, de um levantamento militar, cujo objetivo seria a tomada de poder pelos seus chefes”.

De resto, pouco se sabia além as notícias chegadas de Lisboa, transmitidas pela rádio e pela televisão, exceto que uma coluna do Regimento de Cavalaria 3, composta por 120 homens e comandada pelo capitão Andrade Moura, seguira para a capital durante a madrugada de dia 25, para participar nas ações militares.

A cidade, “pouco a pouco” foi tomando “conhecimento da evolução dos acontecimentos”. Algumas agências bancárias encerraram, mas o comércio manteve-se de portas abertas, “apesar das recomendações em contrário transmitidas pela rádio”. Nas ruas, “cada qual comentava e conjeturava ao sabor das suas tendências políticas ou sociais”, o que não era de somenos importância pois a expressão do pensamento político podia, pela primeira vez, ser feita em plena liberdade, sem receio da PIDE.

“Não tardou”, prossegue o jornal, “que um nome começasse a correr de boca em boca, como o da quase certa figura proeminente do movimento: o do general António Spínola, por sinal estremocense pelo nascimento” e que recentemente agitara o regime com a publicação do livro “Portugal e o Futuro”, no qual defende que a única solução para a guerra colonial é política, não militar.

A pacatez da vida no velho burgo “não sofreu alteração que se visse”. Os jornais esgotaram e as atenções continuaram centradas nas informações transmitidas pela rádio e pela televisão. “Fácil era adivinhar, no entanto, o mundo de interrogações que, por óbvias razões, ia enchendo os espíritos”. Confirmado o sucesso do golpe, a nível local só a 27 de abril, um sábado, houve um primeiro movimento popular de apoio à Revolução.

Conta o “Brados do Alentejo” que mal soou a notícia do regresso a Estremoz do esquadrão blindado do Regimento de Cavalaria 3 começaram a juntar-se “numerosas pessoas” frente ao quartel. “A essas, muitas outras se foram juntando, pela tarde adiante, até que quando a coluna chegou, cerca das 17h30, se contavam por muitas centenas as que ali se haviam concentrado”.

1º DE MAIO

Quatro dias depois, o primeiro 1.º de Maio celebrado em liberdade voltaria a levar milhares de pessoas para as ruas. “Uma profusão de programas e cravos vermelhos, que se viam, desde manhã, em muitas mãos e muitas lapelas, despertou grande parte da população para a manifestação anunciada para as 16h00”. Todos os caminhos foram dar a Rossio Marquês de Pombal. “Ali se reuniram muitas centenas de pessoas de todas as idades, condições e matizes, para ouvirem os esperados discursos e, através deles, tomarem posição frente aos acontecimentos e face às anunciadas linhas de orientação política que vão presidir aos destinos do país e dos cidadãos”.

Os manifestantes haveriam, horas depois, de desfilar pela Rua 5 de Outubro parando frente ao quartel do Regimento de Cavalaria, onde “se repetiram as manifestações de apoio às Forças Armadas e à Junta de Salvação Nacional”. Antes, houve os esperados discursos.

O primeiro orador foi Joaquim Cardoso, da freguesia de Arcos e professor na Escola Secundária, seguindo-lhe António Véstia da Silva, “da freguesia de São Domingos e a exercer advocacia na nossa cidade”. Véstia da Silva seria, aliás, eleito presidente da Câmara de Estremoz nas primeiras eleições para as autarquias, realizadas em dezembro de 1976.

Por entre aplausos, cartazes com palavras de ordem como “abaixo o fascismo” ou “o povo unido jamais será vencido”, usaram ainda da palavra diversos oradores, entre os quais um ex-preso político, que o jornal apenas identifica como Piteira, António Simões e Raul Junior, professores da Escola Técnica, e “o democrata de Évora” António Murteira, que viria mais tarde a ser deputado do PCP.

“Saibamos todos, nesta hora, ser dignos de nós próprios, numa reciprocidade de respeito, de compreensão e de tolerância”, escrevia André Tavares no seu editorial, onde em poucas linhas descrevia o novo tempo: “o movimento do 25 de Abril vem alterar profundamente o sistema, vem mudar radicalmente a máquina e vem substituir, em grande parte, os homens”.

REGIMENTO DE CAVALARIA 3

Quando saiu de Estremoz, na madrugada de 25 de abril, a coluna do Regimento de Cavalaria 3 tinha como missão marchar sobre Lisboa com uma coluna de autometralhadoras e estacionar na zona da portagem da ponte sobre o Tejo, ficando a constituir reserva às ordens do posto de comando.

De acordo com a Associação 25 de Abril, os capitães Andrade Moura e Alberto Ferreira começaram por considerar“problemática” a saída da unidade devido à falta de apoios internos. A única possibilidade seria conquistar o apoio do comandante, o coronel Caldas Duarte. Pelas duas da manhã de 25 de abril, Andrade Moura e Alberto Ferreira abordam Caldas Duarte no sentido da sua adesão. Este mostra-se indeciso e pede tempo para refletir. Duas horas depois anuncia que está com o Movimento das Forças Armadas e iniciam-se os preparativos para a saída da coluna.

O esquadrão chega à então ponte Salazar, hoje 25 de Abril, pelas 13h15, passando a controlar esta infraestrutura e recebendo instruções para marchar sobre o presídio da Trafaria, a fim de libertar os militares que se encontravam presos.

Meia hora depois a missão é alterada, e as tropas recebem “ordem para inverter sentido e dirigir-se à zona do Largo do Carmo para dar cobertura” ao esquadrão comandado por Salgueiro Maia.

Chegam “em tempo recorde”. Andrade Moura e Alberto Ferreira dispõem as forças no Largo e Rua da Misericórdia, Largo do Camões, contactando de seguida com o comandante da GNR, força que se encontrava do lado do regime, convencendo-o a recolher aos quartéis.

Pelas 21h00, Andrade Moura ouve tiros e é informado por populares do que se passava na Rua António Maria Cardoso, sede da PIDE, onde agentes da polícia política tinham disparado sobre populares, matando quatro pessoas e provocando dezenas de feridos. O capitão faz deslocar uma viatura blindada e alguns jipes para o local, cercando a sede da PIDE, sem no entanto disporem de pessoal suficiente para tentar um assalto. A situação só ficaria resolvida na manhã do dia 26.

No dia seguinte o Regimento de Cavalaria 3 estava de regresso a Estremoz, onde foi recebido por centenas de populares.

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