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Desidério Lucas do Ó, o emigrante de Vila de Frades que fundou o PS

Desidério Lucas do Ó “aterrou” em Lisboa em plena campanha de Humberto Delgado, com vontade de descobrir o mundo. Aos 19 estava na Alemanha, tornando-se conhecido pelo apoio aos emigrantes. Em 1973 tornou-se um dos fundadores do Partido Socialista.
. Luís Godinho (texto) e Cabrita Nascimento (fotografia)

Há uma célebre fotografia tirada em 1973 na cidade alemã de Bad-Münstereifel, aquando da fundação do Partido Socialista. Nela podem ver-se dois baixo-alentejanos: no fundo, ao centro, está o falecido Carlos Queixinhas, de Beja, com o braço colocado sobre o ombro de Fernando Valle; na fila da frente, o último do lado direito é Lucas do Ó, com quem me encontro na Vidigueira.

Nascido em Vila de Frades em novembro de 1941, Desidério Lucas do Ó encontrava-se emigrado na então República Federal da Alemanha, fazendo-se notar pelo seu trabalho no apoio à comunidade portuguesa aí radicada. Tito de Morais fez-lhe o convite. E o homem acabou por se juntar aos socialistas e ser um dos fundadores do partido.

Antes de lá chegarmos, pergunto-lhe sobre as memórias que guarda da Vila de Frades da sua infância. “A memória mais antiga que tenho”, refere, “é de estar em frente à loja do meu pai. Sentado não, que eu nunca parava quieto, mas a andar com uma cana entre as pernas, a servir de burro, rua acima, rua abaixo”. A loja do pai era uma daquelas onde se vendia de tudo um pouco, de loiça a bacalhau, de roupa a azeite, situada na Rua do Espírito Santo, entre as duas igrejas da terra. Ao fundo da rua havia uma taberna, em frente havia outra, na rua ao lado uma terceira. “Os homens chegavam do campo à noite, iam beber o vinho do trabalho e vá de cante. Foi aí que aprendi a cantar. Havia espaço e tempo para tudo”.

Foi lá que fez a escola primária, passando depois a estudar num colégio particular criado pelo doutor Espadinha “para dar uma saída” à rapaziada da vila. “Os professores tinham uma formação rudimentar, chamemos-lhe assim, nada comparada com a de hoje, mas foi lá que tirei o 5.º ano, indo depois fazer o exame a Beja”.

Os estudos ficaram por aí, pois não havia dinheiro para mais. “Só tínhamos duas saídas, trabalhar no campo ou aprender um ofício”. Bom, existia uma terceira e foi a essa que o jovem Lucas do Ó se agarrou. “Quando acabei a escola passei uma boa parte do tempo a escrever na máquina de um amigo do meu pai, pois o meu objetivo era conseguir um emprego em Lisboa”. Ganhou-lhe o jeito e a inclinação política, já que esse amigo era da oposição republicana à ditadura e muitos dos textos que escrevia eram cópias de artigos do jornal República, que por vezes conseguia “fintar” a censura e publicar textos pondo em causa o regime. “Foi aí que tive uma certa ini- ciação à política”.

Aos 17 anos parte para Lisboa, encontrando trabalho numa empresa de navegação, no Cais do Sodré, de onde passou para uma agência de viagens. A sua chegada à capital dá-se em plena campanha presidencial de Humberto Delgado. “Eu e uns colegas corremos para a estação de Santa Apolónia para ir receber o Humberto Delgado, que vinha do Porto. Lá fomos… quer dizer, fomos até metade do caminho porque a certa altura começou a haver pancadaria com os militares da GNR a tentarem impedir que as pessoas avançassem. Foi a minha primeira confrontação com a realidade política do país, além do que conhecia de Vila de Frades, onde as pessoas viviam muito mal, com muitas dificuldades”.

Como o negócio do pai já passara por melhores dias, a família acaba por se juntar na zona da capital, instalando-se na Amadora. Tinha aprendido inglês, um pouco de francês, e o trabalho na agência de viagens despertara em Lucas do Ó “uma grande necessidade e aspiração de ir para fora”, correr mundo. Aos 19 anos estava a caminho da Alemanha, beneficiando de uma “licença militar definitiva” que por essa altura, ainda antes da guerra colonial, poderia ser dada aos mancebos antes do ano da incorporação nas forças armadas.

Na sua vida de emigrante começou por lavar carros, daí passou para uma tipografia onde se imprimiam jornais, aprendeu alemão – “tinha alguma cabecinha para aprender línguas, pelo que passado um ano já falava alemão com muita fluência” – e instalou-se numa aldeia situada dos arredores de Frankfurt.

“Às tantas toda a gente me conhecia porque era jovem, com cabelo preto, moreno, com alguma aceitação do público feminino”, recorda. Presença assídua nos bailes, jogador na equipa de futebol da terra, integra-se com facilidade e é aí que a partir de 1964, “quando começa a chegar a primeira grande leva de emigrantes”, se começa a interessar pelos problemas destes trabalhadores, fugidos à miséria que se vivia em Portugal. “Como já falava muito bem alemão comecei a ajudá-los, depois fui contratado pelo Consulado de Frankfurt como assistente social, conhecia muito bem toda a comunidade portuguesa e todos conheciam o Lucas, tornei-me notado”, assinala.

Quem “reparou” no seu trabalho junto dos emigrantes foi Manuel Tito de Morais, fundador da Ação Socialista Portuguesa juntamente com Mário Soares e Francisco Ramos da Costa, que por essa altura estava exilado em Roma e percorria a Europa na tentativa de “angariar pessoas” para a causa socialista. “Abordou-me e comecei a trabalhar com eles, fundando um núcleo em Frankfurt, no início da década de 70”. As atividades políticas e sociais começam, então, a “ganhar uma certa dinâmica”, com a realização de reuniões, conferências e comícios, pelo que não estranhou o convite para estar presente em Bad-Münstereifel na reunião onde seria fundado o Partido Socialista.

“Como era dos militantes mais ativos, lá fui”, refere Lucas do Ó, para quem um dos aspetos mais “interessantes” desse encontro foi a possibilidade de “ter conhecido pessoas que vinham de Portugal, do interior como então se dizia, com uma capacidade de argumentação e de exposição dos problemas que eu não conhecia, pois tinha saído do país com 17 anos”. De um momento para o outro via-se “confrontado pela primeira vez” com discursos onde se recorria a dados económicos e sociopolíticos para expor o atraso do país, feitos por pessoas como Mário Soares, ou António Arnaut.

Sobre a mesa estava a decisão de trans- formar, ou não, a Ação Socialista Portuguesa num partido político. “Fui a favor da criação do partido”, diz Lucas do Ó, “mas para mim era fácil assumi-lo pois estava a residir na Alemanha, quem vivia em Portugal tinha outra opinião já que havia o receio do que lhes pudesse acontecer”, ou seja, das perseguições e da prisão pela polícia política. “Tive a perfeita noção de estar a viver um momento histórico, com plena consciência do que tudo aquilo significava”.

É através da rádio alemã que lhe chegam notícias da Revolução, vivendo o 25 de Abril entre uma “excitação enorme” pela liberdade e pela democracia que se instalavam em Portugal, e a “grande tristeza” por estar longe. “Liguei ao Tito de Morais e ele confirmou que o golpe era da malta de esquerda, foi uma grande alegria”. São momentos que as fotografias da época comprovam. Como aquela tirada em Frankfurt onde, numa sala com vivas ao 25 de Abril, surge um grupo de homens trajado com lenço encarnado a cantar à alentejana.

“MUITO OBRIGADO, MAS ACABA AQUI”

Regressado a Portugal a tempo do I Congresso do PS, Lucas do Ó abandona o partido pouco depois, aquando da fundação da UGT. “Achei que era uma divisão da classe trabalhadora, era frontalmente contra, pelo que escrevi uma carta ao Mário Soares a dizer muito obrigado, mas acaba aqui”. Os estudos superiores concluídos na Alemanha abrem-lhe as portas do ensino: primeiro em Beja, depois em Faro, ainda se candidatando numas autárquicas, pelo Bloco de Esquerda. “Não era rapaziada com quem me identificasse muito”, desabafa.

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