Dos livros e da história. A propósito da 30.ª Cozinha dos Ganhões

Até domingo, Estremoz será palco da Cozinha dos Ganhões, um dos mais antigos certames da gastronomia regional. Luís Godinho (texto)

Médico, escritor e um dos políticos mais influentes da I República, não necessariamente por esta ordem, Brito Camacho via o mundo na perspetiva de uma família de abastados proprietários rurais alentejanos, sem nunca se alhear do mundo que o rodeava.

“Às oito horas da manhã”, escreveu em “Jornadas” (1927), “estamos a voltas com uma açorda, a clássica açorda alentejana, que só não figura na lista dos banquetes por uma lamentável ignorância dos cozinheiros, e uma estranha aberração do gosto, por banda das pessoas que pretendem comer bem”.

Por regra, assinalava, “os amos comiam junto da chaminé, os criados em frente da porta” da casa principal. “Em pouco diferia a comida duns e doutros, a não ser na qualidade de pão, que para os criados era de toda a farinha, para os amos de farinha espoada”.

Quando lhe dava para “meter o nariz” na casa da malta, chegava a causar espanto: “O que eu gostava de almoçar com os criados, quando o almoço era de papas, e como eles ficavam satisfeitos quando me viam à roda do tacho, armado de colher, como se também fosse um ganhão”. Papas com umas gotinhas de mel, assegurava, “era dos anjos as comerem, lambendo os beiços”.

Aos ganhões, “em número indeterminado” em cada herdade, estava entregue todo o trabalho da lavoura, à exceção das ceifas. “Topa a tudo por assim dizer”, escrevia Silva Picão em “Através dos Campos” (1904). Com o dia de trabalho a começar bem cedo, o almoço era a primeira refeição do dia, servido madrugada cerrada, lá para as três da manhã no outono, tempo de sementeiras.

Um almoço “parco e sem vontade”, na expressão de Fialho de Almeida (“À Esquina”, 1903), normalmente composto por “pão seco, azeitonas, algum queijo de cabra ou laranjazita mirrada, e água! água! água! bebida pela boca dos cântaros, a plena gorja”. Nem sequer a açorda, de que nos fala Brito Camacho, era comer para todos os dias.

Foi a pensar nesta “comida de pobres”, como a apelidou a falecida escritora e gastrónoma Maria Antónia Goes, que surgiu a ideia de organizar em Estremoz um certame gastronómico, que entra agora na sua 30.a edição. Um dos impulsionadores, lembra José Emílio Guerreiro, que à época era presidente da Câmara, foi Aníbal Falcato Alves, professor e autor de uma vasta e riquíssima obra sobre a cultura alentejana, que compreende recolhas gastronómicas e a edição de livros, incluindo “Os Comeres dos Ganhões” (1994).

“Penso que a Cozinha dos Ganhões foi o primeiro festival de gastronomia que houve no Alentejo. A primeira edição foi em 85, no Rossio, era eu presidente de Câmara. E retomou em 94, era eu vereador”, refere o ex-autarca, sublinhando que nessa altura “a comida alentejana não tinha o prestígio” dos dias de hoje. A intenção foi a de criar um espaço onde as pessoas “podiam encontrar os petiscos como se faziam na taberna das aldeias”.

Petiscos como as migas alentejanas ditas “à pobre”, numa receita recolhida durante uma entrevista feita em 2012 a Belmira Coimbra, de Santa Vitória do Ameixial, e publicada na “Carta Gastronómica do Alentejo” (2013). Feitas para o pessoal que trabalhava no campo, as “migas à pobre” levavam uma quarta de toucinho, alhos, um pão de quilo, uma farinheira e uma linguiça.

Acompanhemos a informação deixada por Belmira Coimbra: “Frita-se o toucinho num tacho e no pingo fritam-se a farinheira e a linguiça. Aproveita-se a gordura e migam-se os alhos. Em seguida, miga-se o pão em fatias para dentro do tacho e colocam-se umas pedras de sal. À parte, coloca-se uma cafeteira com água a ferver”. Resta adicionar um pouco desta água ao pão, “abafa-se com a tampa do tacho”, e “esmaga-se tudo com um garfo e envolve-se no alho e no molho até ficar seco”.

PROGRAMA VARIADO

Com o passar dos anos, e as imposições legais, o espaço da Cozinha dos Ganhões foi pro- gressivamente ocupado pelos restaurantes. Mas o desafio continua idêntico: promover a gastronomia alentejana. Haverá também espaço para outras iniciativas, incluindo concertos, um espetáculo comemorativo dos 10 anos de classificação do cante como Património da Humanidade e a apresenta- ção da Cidade do Vinho 2025.

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