Duarte celebra 20 anos de carreira com lançamento de novo disco

Ao longo destes anos, habituámo-nos a admirar a voz de Duarte não só pela sua singularidade tímbrica ou pela enorme expressividade (falada e teatral, nalguns momentos, com uma noção muito exacta daquilo que os versos pedem), mas também pela firmeza consciente e inegociável em cantar poemas que ferem. Gonçalo Frota (texto) e Ricardo Reis (fotografia)

Não há como fugir-lhe. Sempre que um número redondo começa a ficar nítido no horizonte, a ideia de balanço vai-se impondo nas nossas cabeças. Olha-se para trás, faz- se contas àquilo que se concretizou e àquilo que ficou por concluir, toma-se uma consciência mais clara do caminho que se foi percorrendo, percebendo melhor aquilo que levou do ponto A até ao B, ao C e a todos os outros que o alfabeto permita nomear. 

Com o fadista Duarte aconteceu o mesmo, ao ver aproximar-se a marca dos 20 anos de carreira. Só que, no seu caso muito particular, o balanço que decidiu empreender assume um duplo sentido. Na verdade, mais até do que um olhar para trás e uma celebração do caminho que fez dele uma das mais notáveis vozes do fado de hoje, aquilo que o move em Venham Mais Vinte 2004-2024 é uma mirada dirigida para a frente. O balanço, aqui, é sobretudo equivalente ao momento de dar uns passos atrás, ganhar espaço para a corrida e saltar em frente. Assumindo, talvez mais do que nunca, o risco desse salto. A experiência tem também destas coisas – minimiza as incertezas, aguça a ousadia, ajuda a uma definição mais inteira de quem se é, sem medo das opiniões de terceiros e sem o peso de querer adivinhar o que outras cabeças gostariam que fossem os passos seguintes. 

Venham Mais Vinte, numa alusão evidente a José Afonso, é também um título feito dessa mesma vontade de imaginar que virá depois, sem pensar demasiado naquilo que já foi – porque o passado, quer queiramos quer não, carregamo-lo sempre connosco. E é, em vez da habitual celebração e do costumeiro “o melhor de”, um disco de risco assumido. Em vez de comprazimento, Duarte quis a ousadia. Em vez de dar palmadinhas nas costas de si mesmo, Duarte quer antes empurrar-se e ver onde vai cair. 

Por isso, até quando viaja ao passado, não é para o deixar intacto. Em Venham Mais Vinte, reencontramos dois dos temas mais marcantes destas suas duas décadas nos discos (a estreia, Fados Meus, é de 2004), nos palcos e nas casas de fados, vemo-nos de novo perante “Reviravolta” e “Maria da Solidão”. Só que olhados com as lentes do presente (e, quem sabe, do futuro): “Reviravolta” mantém a sua toada (rítmica e melódica popular), mas é esculpido agora por programações electrónicas de Mema e uma guitarra eléctrica que irrompe indomada pela canção, abrindo-a para novos sentidos. “Maria da Solidão” volta ao ninho, reúne-se de novo ao seu criador original, num belíssimo dueto com Vitorino, dois alentejanos a cantarem uma solidão feminina embalada por um piano, tocado por Filipe Raposo, que é todo um belo tratado em melancolia. 

Sem qualquer tipo de calculismo (tão presente na música que hoje se produz), Duarte mostra-se no fado e fora dele, num universo musical amplo e pessoal, no qual tanto cabem guitarras eléctricas como harpas, programações electrónicas como acordeões, além das inevitáveis cordas do fado (guitarra portuguesa, viola e baixo). E tanto ciranda o fado a rasar o tango (em “Likes”) quanto a bossa nova segundo o modelo de Tom Jobim (em “Obrigado”, com João Pitta e Pedro Segundo), tanto visita os ecos da folk norte-americana (em “Estado Limite”) quanto se alinha com a música tradicional portuguesa (em “Não Importou que Ficasse”, com Filipe Raposo) ou arrebata numa interpretação esplendorosa do Fado Menor do Porto, voz e contrabaixo numa lenta dança a lembrar o universo de José Mário Branco (em “Meus Olhos que por Alguém”). E, claro, “Do Vagar”, verbo definidor do modo de encarar os dias no Alentejo e também mote para Évora 2027 – Capital Europeia da Cultura, redescobrimos, ainda e sempre, a sua umbilical ligação ao cante alentejano, partilhada com Ricardo Ribeiro, Pedro Calado e Grupo de Cantares de Évora. 

Ao longo destes anos, habituámo-nos a admirar a voz de Duarte não só pela sua singularidade tímbrica ou pela enorme expressividade (falada e teatral, nalguns momentos, com uma noção muito exacta daquilo que os versos pedem), mas também pela firmeza consciente e inegociável em cantar poemas que ferem e que alfinetam, que não se acomodam a abstracções amorosas ou a versos que pouco mais fazem do que rimar para enfeitar canções que nada dizem. Quando canta, Duarte é sensível e doce, cáustico e sarcástico, reflexivo e filosófico, consoante aquilo que a música lhe pede em cada instante. 

Em Venham Mais Vinte, Duarte volta a cantar sobre a vacuidade da cultura contemporânea em “Likes”, apontando o dedo a uma indústria cultural (e musical, em específico) mais preocupada em avolumar likes e seguidores do que em criar um discurso artístico relevante; canta um “Obrigado” (letra de Cláudia Lucas Chéu) a quem lhe estragou a capacidade de amar, consequência (temporária) de algum amor caído em desgraça; canta o irónico despeito, escrito por José Carlos Barros, de quem não se poupa a, com a elegância possível, mandar o seu antigo objecto de amor para o diabo que a carregue (as emoções nem sempre são as mais elevadas e a raiva, não finjamos que não, faz parte das nossas vidas e deve ter lugar na música). 

À semelhança do que vem acontecendo na sua discografia. Duarte não evita também pensar em Venham Mais Vinte como um álbum conceptual. Desta vez, a união entre os vários temas faz-se a partir da assunção de um lugar de vulnerabilidade. Uma vulnerabilidade não como sinónimo de fraqueza, mas antes como um sinal de abertura ao mundo, de integração das fragilidades, de procura por uma postura na música sem se esconder daquelas que são as suas verdades. Sem receio das consequências. Era o que faltava que agora, passados 20 anos, Duarte começasse a ter medo do futuro. Pelo contrário, venha ele! E Venham Mais Vinte! 

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