Ensaio de Feliciano de Mira: “Escritas experimentais: um perigo!”

As atividades da Évora Experimental combinam diferentes géneros e suportes que valorizam o diálogo entre linguagens e têm sido realizadas pela Oficina do Espírito/Invencionarium. Este grupo constituiu-se no ano de 2000 em Paris e realizou uma trintena de ações até formalizar-se como associação, passados 20 anos, para manter o imaginário experimental e criar subjetividades dentro de uma didática invencionista. Feliciano de Mira (texto e ilustração)

O experimentalismo nas escritas tem origem em movimentos de vanguarda, que surgiram com visibilidade a partir do final do século XIX, ao longo do século XX e procuram formas de expressão que rompam com tradições estabelecidas e introduzam novas ideias, materiais e técnicas. Este movimento continua enraizado na cultura portuguesa e no invencionismo alentejano, uma fileira de pensamento, extensa em criatividade e realizações.

As propostas que os experimentalistas apresentam nas suas obras desafiam convenções e procuram que a receção da obra reforce a consciência crítica. A intenção é aplicar processos que resultem em obras que questionem o que está normalizado, através da fusão de diferentes formas expressivas. A criação de novas linguagens é uma maneira de questionar, refletir e desafiar a perceção estética ‘mainstream’.

O campo das escritas experimentais portuguesas tem sido marcado por três vetores: invenção, transgressão e metamorfose. A invenção é prova de ação, a transgressão denuncia, a metamorfose atinge a enunciação discursiva das obras. Esta poética faz-se acompanhar pela resistência à hegemonia, apela à subversão normativa e ao gozo lúdico da criatividade.

Os seus pressupostos estão presentes nos escritos de E.M. de Melo e Castro e Ana Hatherly, fundadores da Poesia Experimental Portuguesa – PO.EX., nas obras de Salette Tavares e António Aragão, na colaboração dos músicos Jorge Peixinho e Mário Falcão, nas realizações de Ernesto de Sousa. Em todos os momentos as escritas experimentais portuguesas interagiram com o movimento internacional deste campo, situação que se mantém na atualidade, envolvendo desde as caligrafias às escritas assémicas, do letrismo tipográfico ao digital, da hipermédia nas novas tecnologias aos demais cruzamentos disciplinares.

Toda esta informação pode ser consultada no Arquivo Digital PO.EX. (po.ex.net), dirigido por Rui Torres e na documentação do doutoramento em Materialidades da Literatura da Universidade de Coimbra (https://apps.uc.pt/ courses/pt/course/2341), dirigido por Manuel Portela, centrado na análise das materialidades digitais que caracterizam certas práticas e formas literárias contemporâneas.

Entre as pesquisas em literatura comparada que tenham analisado as escritas experimentais, destaco o projeto “Novas Poéticas de Resistência: O Século XXI em Portugal” (2007- 2011), financiado pela Fundação Ciência e Tecnologia e executado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. A equipa era constituída por mais de duas dezenas de investigadores, que abordaram a política das formas poéticas em Portugal e para cujo relatório final redigi o capítulo “Para uma Sociologia do Autor: Radicalismo Itinerante e os Processos Invencionistas Alentejanos”.

O projeto parte da raiz etimológica da palavra poética: o primeiro fazer, dar forma a partir da raiz do som. Como diz Charles Bernstein, teórico da L=A=N=G=U=A=G=E School da Universidade da Pensilvânia, a linguagem é a primeira coisa forjada, a primeira extensão da forma do corpo: uma cópia e uma ilusão. Então, as escritas experimentais devem ser entendi- das como “poéticas de outra tradição” (conceito criado pela norte-americana Marjorie Perloff) que pertencem às poéticas da resistência. O seu território fundador inclui o não-dito, o interdito e o inaudito, infinitas formas literárias experimentais e inevitáveis e impossíveis traduções.

É dentro destes referenciais que se realiza a Évora Experimental – EV.EX., um programa estético-político verbivocovisual (conceito introduzido por Joyce e adotado pelos teóricos do experimentalismo) que tem vindo a realizar-se anualmente desde 2019. A Évora Experimental assenta no que já realizou:

1 – Sete exposições temáticas que apresentaram obras bidimensionais, onde a disposição gráfica e os elementos visuais são tão importantes quanto o conteúdo, livros de artista, objetos poéticos e instalações. Em cinco edições participaram 67 artistas, da geração histórica da PO.EX., da 2.a geração da PO.EX., da geração Pós-PO.EX. e da geração emergente, em diálogo com referências mundiais do Brasil, Espanha, Itália, Inglaterra, India e Paquistão, Argélia, Líbano, Cuba, Moçambique e Austrália;

2 – A GMPS – Global Multimedia Poetry Stands aplica as técnicas da mail-arte e reuniu 300 artistas de 50 nacionalidades, que aceitam a ressignificação das obras que enviam, pela sua montagem pública num dispositivo volumétrico de 4x2x2m, a que se juntam gravações de poesia sonora;

3 – A Videobox apresentou 41 obras de videoart;

4 – As Escritas do Corpo realizam happenings e performances, nas quais o gesto, a voz e a presença física são parte da ação poética, e que tiveram a participação de 32 artistas;

5 – O Laboratório de Experimentus Poéticos realizou 15 oficinas de escritas criativas, reflexivas e interativas;

6 – A Textográfica apresentou 49 publicações impressas de poetas e de editoras das escritas experimentais.

Estas atividades combinam diferentes géneros e suportes que valorizam o diálogo entre linguagens e têm sido realizadas pela Oficina do Espírito/Invencionarium. Este grupo constituiu-se no ano de 2000 em Paris e realizou uma trintena de ações até formalizar-se como associação, passados 20 anos, para manter o imaginário experimental e criar subjetividades dentro de uma didática invencionista.

A sua utilidade é semelhante à de um pomar, os seus frutos saboreiam-se pela maturação das obras e conteúdo das mensagens, que contribuam para o reforço da cidadania e consciência crítica, associando investigação, conhecimento e produção, combatendo os sentidos do totalitarismo simbólico.

A poesia portuguesa contemporânea tem uma comunidade (livrarias, editoras, media e escolas) reduzida, com criações poéticas caracterizadas ou pelo revivalismo da discursividade sentimental, ou pela intenção panfletária, sendo maioritária a poesia lírica e confessional. Mesmo assim, tem conseguido ofuscar as escritas experimentais do mundo das letras, que só adquirem visibilidade na academia através de mestrados e doutoramentos, em publicações individuais ou em esparsas edições de revista – na comunicação social costuma estar omissa. Nestas condições nem sempre é fácil explicar as iniciativas deste campo de trabalho às instituições de regulação expectantes.

Apesar desses constrangimentos, no nosso caso, a democracia tem funcionado. Porém, os campos do experimentalismo deveriam estar mais presentes nas políticas culturais da governação, a quem cabe a responsabilidade social de combater a iliteracia estética. As políticas públicas para as letras e as artes em todos os escalões da governação devem evitar juízos estéticos que levem à exclusão de linguagens que, apesar da sua qualidade expressiva, não estejam dentro dos parâmetros do gosto dominante.

A pluralidade estética aplicada às ações artísticas requer que o financiamento dos projetos atenda a todas as linguagens e expressões. A sua popularização requer uma mediação didática que desperte imaginários criativos e que, ao mesmo tempo, facilite a comunicação de outra tradição.

É necessário haver públicos esclarecidos sobre o duvidoso histórico, o etnográfico requentado, o extrativismo tradicional, o popular plagiado. Estes são lugares onde as escritas experimentais não estão, são linhas de marear e descobertas pelo caminho, objetos com muitos saberes condensados e outros conhecimentos que se adquirem pelas viagens.

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