O vinho, é apresentado como uma bebida sofisticada e cheia de nuances, que ocupou sempre um lugar de destaque nas páginas das grandes obras literárias. Desde tempos memoriais, quando era associado aos deuses, até os dias atuais, em que representa elegância e celebração, a presença do vinho na literatura é marcante. Qual a razão para esta eterna e inquebrável aliança? Será no efeito comum que ambas as artes produzem: a capacidade de estimular e despertar os sentidos? Ambos são capazes de nos transportar para um lugar diferente, de nos fazer refletir e de nos conetar com as nossas emoções mais profundas.
“Amante e boémio, com os poderes desinibidores capazes de fazerem espoletar o amor, ou, ao invés, bálsamo atenuante para desilusões amorosas, o vinho ocupa na vida e na literatura um lugar proeminente” (João Rodil).
Muitos são os escritores que se serviram do veículo literário da poesia para falar de vinhos. O vinho sempre esteve intrinsecamente associado à literatura, porque ambos tocam a alma, alegram o dia e melhoram a vida. É indissociável a relação simbiótica que existe entre o vinho e a literatura, seja o vinho utilizado como veiculo/instrumento indispensável à atividade da escrita, como metáfora para ilustrar a realidade (Eça de Queiroz), ou por fim, a relação análoga que estas duas artes estabelecem com a verdade. Todos os grandes escritores da humanidade se notabilizaram como bons artistas de copo.
Terá sido este o mote inspirador, para a consagração da quinta edição do Congresso Internacional Língua, Literatura, Vinho e Território “Bebíamos poesía… además de moriles”, cuja organização esteve a cargo das professoras Elisa Borsari e Linda Garosi (da Universidade de Córdova) e Carla Castro (da Universidade de Évora), que tem um papel fundamental nestes eventos, e a quem devo o conhecimento da iniciativa e a oportunidade de participação.
Um evento extraordinário, que beneficiou de um palco sagrado, o reino mágico da Andaluzia, cantada nas palavras sábias de Pablo Cantico: “Y el vino fragante dorando los labios de la Córdoba sabia, aguda, donosa, cortés, prudente, sobria, parca, recôndita” [em tradução livre: “E o vinho fragrante dourava os lábios da Córdova sábia, perspicaz, graciosa, cortês, prudente, sóbria, contida, recôndita”].
A antiga capital do al-Andalus é um sortilégio que parece nascer de uma encruzilhada de culturas, ao qual emergiu com um carácter e um modo de vida singulares, feitos símbolos de um país, o rincón dos poetas, de onde afloraram os mestres mais notáveis das letras do Hispano-Árabe. Não poderia haver palco melhor para celebrar um evento desta natureza.
Córdova rima com paixão, e lembra a tinta que corre nas veias de inspiração do duende que Garcia Lorca tanto invocou, esse sobressalto poético, que tanto pode estar entrincheirado nos montes ou estendido nas planícies, como pode surgir sob sol inclemente ou à vista dos touros bravos, ou simplesmente romper da religião ou libertar-se do salto do flamenco. Todo o Mediterrâneo — as esculturas, as palmeiras, as contas douradas, os heróis barbudos, as ideias, os barcos, a luz da lua, as górgonas aladas, os homens de bronze, os filósofos — parece confluir neste território místico. E o vinho, surge como o fio condutor das várias culturas mediterrânicas.
O islão faz na Península Ibérica a síntese das civilizações mediterrânicas, nomeadamente aqui no Gharb, berço dos grandes poetas andalusinos e luso-árabes, que cantaram e evocaram o Amor e a Natureza. E o sangue da terra é “poesia engarrafada”, justificada pela enorme quantidade de poemas dionisíacos numa cultura orientada para a abstenção. Contudo, as almas nobres defendiam que o vinho não é álcool, servia de inspiração aos inúmeros poemas cantados nos tempos pré-islâmicos, que evocam a paixão pela bebida suprema.
Nas palavras de Titus Burckhardt: “A ebriedade provocada pelo vinho pode ser parábola de êxtase espiritual”.
A mística islâmica utilizou tanto a poesia amorosa como a dionisíaca no sentido figurativo, cuja chave serviu para abrir as portas do divino, utilizada como símbolo do conhecimento de Deus: “Eran pesados los vasos cuando vinieron a nosotros; pero cuando estuvieron llenos de vino puro se aligeraron y estuvieron a punto de volar con lo que contenían, del mismo modo que los cuerpos se aligeran con los espíritus” [em tradução livre: “Eram pesados os copos quando chegaram até nós; mas, ao encherem-se de vinho puro, tornaram-se leves e quase alçaram voo com o que encerravam, tal como os corpos se tornam leves pela ação dos espíritos”].
Feita de contrastes, Córdoba, parece mover-se entre o sagrado e o profano, talvez justificada por ser uma terra que durante séculos serviu de berço às três religiões principais: judaísmo, islamismo e cristianismo. Um sincretismo especial unido pelo cálice providencial do sangue de Cristo, uma bênção divina que simbolizou a aliança entre Yhwh e Israel. Incontornável presença nos rituais, nas celebrações, nos cultos, órficos, mistéri- cos, dionisíacos, o sagrado elixir, permitia a iluminação súbita como a descrevem os místicos e gnósticos, a via ascensional de redenção que a alma deveria conseguir para alcançar o Entendimento Superior.
Importa ressalvar um elemento fundamental, embebido neste vasto património idiossincrático no sul mediterrânico, o vinho na poesia e na vida, onde o sol ilumina os corpos, e o vinho convida à libertação dos sentidos. Deste país, que nasce também da sensibilidade dos seus poetas, dos seus reis-poetas, possibilitou o “caldo de cultura” existente no Garbe al-Andalus, onde, poucas décadas depois, surgiu o reino de Portugal.
Uma herança incalculável, que encontrou eco na voz de Adalberto Alves: “Provavelmente a saudade não seria dita em português e Camões ou Pessoa não seriam quem são”.
Este terá sido o ponto de partida para uma caminhada poética, com destaque para o amor trovadoresco das cantigas de D. Dinis, que atravessa as várias gerações do Romantismo, entre outros, que são o rosto visível desta “aventura” lírica que marca indelevelmente a História de Portugal. Pessoa revê-se neste imaginário poético de há quase mil anos.
O rico contexto, que serviu para acolher uma valorosa iniciativa que reuniu o contributo de vários investigadores que desenvolvem os seus estudos em Portugal, Espanha, França e Itália: por um lado, foram apresentados os estudos literários que abordam a língua e o discurso em torno do vinho, o papel do vinho na literatura e na história, o vinho associado às artes, a perspetiva económica do comércio e dos processos de regulamentação, e por fim, a ciência do terroir.
Mais concretamente, eis alguns exemplos dos temas retratados: “Vino y comida de los peregrinos italianos a Santiago (siglos XVI-XVIII)”, que mostrou a importância do vinho e da gastronomia, num dos itinerários religiosos mais importantes da Cristandade, e que independentemente do estrato social, surge um elemento que dissolve todas as diferenças, o vinho; “La celebración del desconsuelo: el «dolce» y el «aspro» vino en la poesía de Umberto Saba”, em que o vinho na poesia de Saba é como refúgio placentário daqueles que se escondem das amarguras da vida; “Sine Cerere et Baccho friget Venus. La presencia de Baco en la escena áurea”, que retrata a figura do Deus central na cena áurea, com exploração do significado na comédia a partir do inicio do séc. XVII até ao barroco tardio; “Vino y locura: Las bacantes. De Eurípides a Las Niñas de Cádiz”, a tragédia de que incide na loucura das seguidoras de Dionísio.
Entretanto, não faria sentido que um evento desta natureza ignorasse uma enorme civilização da vinha e do vinho, que é o Alentejo. Não fosse só pelo simples facto de o Alentejo se constituir como um território da religiosidade profunda, de uma religiosidade associada à sua dimensão antropológica e, por outro lado, onde o cristianismo mas também o judaísmo e o islão deixaram marcas profundas.
Ao abrir as páginas da história deste congresso, constatamos que a terceira edição escolheu a cidade de Évora para a sagração do evento, sob o signo das palavras do poeta António Barbosa Bacelar: “Venha mais vinho e deem-mo vezes cento”.
Contudo, vítima das circunstâncias, decorreu numa fase menos auspiciosa, no ano de 2021 que fez coincidir com a pandemia, o que justifica não ter merecido o destaque devido. Para além de que o Alentejo é um território feito de uma religiosidade fecunda, de uma religiosidade associada à sua dimensão antropológica, onde as três religiões deixaram marcas profundas, não só na cultura material, mas sobretudo na imaterial, pois consolidaram a sua personalidade, sobretudo numa vertente ecuménica em que o alentejano procura não atender a intermediários na sua relação com o sagrado.
Um itinerário fascinante em torno do vinho na literatura, que ao longo de três dias incríveis, foi possível percorrer toda a nossa história, como cantou Jorge Luís Borges: “(…) o vinho ensina-me a arte de ver a minha própria história como se esta já fora cinza na memória”. E, ajudaram a compreender as várias faces do vinho, e que comprovaram que no ato de beber, seja uma forma de saciar a inegável sede de amor dos vários poetas.
In Vino Veritas. Na aceitação do aforismo, que no vinho mora a verdade, procuramos no aconchego das levadas graduações alcoólicas descodificar as impressões sensoriais distintas, os seus diversos aromas provenientes de determinadas castas para assim chegarmos à verdade intrínseca do seu terroir. É esta a analogia que se impõe: a boa literatura tal como um bom vinho, deve necessariamente ser entendida para ser bem apreciada. A literatura também esconde uma verdade, a verdade sobre nós próprios.
O vinho e a literatura, ambos frutos da intervenção do homem sobre a natureza, criados para desfrutar a companhia e a amizade, são a real expressão da voluptuosidade da imaginação. São, na verdade, os elementos de harmonia entre o céu e a terra. A literatura e o vinho, e o seu efeito combinado providenciam a verdadeira arte de tocar a alma. Um blend perfeito, o vinho harmonizado com a literatura é uma verdadeira celebração da arte e da criatividade humanas. É a aliança entre sabores e palavras, que abre as portas a todo um universo sensorial.
A autora é investigadora e doutoranda da Universidade de Évora